A Vida de um EndoMarido: As lágrimas são a alma a lavar o corpo!

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Em um inesperado retorno, nosso querido endomarido português, Alexandre Vaz, faz uma homenagem à sua esposa pelos 8 anos de casamento. Em “A Vida de um EndoMarido”, ele abre seu coração sobre a ausência física diária daquela que escolheu para ser a mulher de sua vida, e como faz para, mesmo de longe, ajudá-la a lidar com os percalços da endometriose.

Todos nós passamos por provações, afinal vivemos num mundo de provas e espiações, e num relacionamento a dois é preciso sempre colocar o amor e o propósito de estarem juntos em primeiro lugar. E quando se está há milhares de quilômetros de distância da pessoa amada, a prova é ainda maior.

Infelizmente, muitos endocompanheiros, seja marido, noivo ou namorado, abandonam o barco no decorrer do curso do rio. Eu sempre falo às minhas leitoras mais próximas e que passam por isso, que isso é um livramento de Deus. Porque se a esposa tivesse ganhado na mega sena duvido que o companheiro iria deixá-la.

Deus sempre sabe o momento de dar e de tirar. Não podemos deixar que o relacionamento se torne um fardo. A endomulher precisa de apoio, quando esse apoio acaba, não há porque continuar. Antes de amar alguém temos de nos amar acima de tudo.

Há um ciclo para tudo na vida. Quando esse ciclo finda, o melhor de virar a página é ver que existe uma nova em branco a ser escrita. O que era um fardo se torna fado, com momentos de risos e de choros.

E como bom português com saudoso de sua terrinha, Alexandre compara esse estilo de música à viver com endometriose. Um texto que fará homens e mulheres a refletirem sobre o significado do amor “na saúde e na doença”. Beijo carinhoso! Caroline Salazar

Por Alexandre Vaz
Edição: Caroline Salazar

A Vida de um EndoMarido: As lágrimas são a alma a lavar o corpo!

Pedi à Caroline para deixar este texto em português de Portugal, porque sou eu, e quando me exponho, é assim que gosto de ser. Eu, com as minhas falhas, alguma virtude que me possam encontrar, talvez algum jeito para alguma coisa, e todas as minhas chatices e embirrações.

Nesta vida somos mais levados do que a levamos. As prioridades que definimos condicionam o caminho de cada um de nós. E nada condiciona mais do que o amor, mas quando é por amor, é voluntário e vem da vontade de dar, de ser para o outro.

Nós passamos para segundo plano, porque há alguém mais importante. A nossa dor vale a pena pelo sorriso da pessoa amada. E por ela, nada é excessivo, nada é demais.

Longe do meu país desde 20xx, tenho aprendido muito mais sobre Portugal e sobre ser português do que antes. Se é pela idade, e o estar mais preparado para abraçar certas coisas que sempre me mostraram ser a identidade do meu povo, ou se é pela emoção de uma vez por outra descobrir algum produto numa loja que vem de lá, ouvir alguém na rua a falar português, ou o olhar pela janela do avião e lá embaixo já é Lisboa, não sei dizer.

Mas já sinto isso, já faz parte de mim e já não sai. É uma coisa de sangue, que se entranha na pele e conosco fica, é assimilado pelo corpo e pela alma. O complicado disto tudo, de ter tido de emigrar para conseguir pagar as contas e tentar um futuro melhor para mim e para a minha esposa, não é eu estar longe dela. É ela estar longe de mim.

É ter de lhe negar a minha presença, o meu apoio diário, o fazer as palhaçadas do costume quando ela está pra baixo para que lhe brote um sorriso. É saber que isso lhe faz falta, e que sofre com esta distância. Porque lá está, doi-me mais a dor dela do que a minha.

Para preencher o tempo e matar algumas saudades, vejo por vezes coisas lá da terra. Abençoada internet. Quando eu era criança não gostava nada de ouvir fado. Fugia desse género musical como o diabo foge da cruz. Até que a vida me ensinou o que é o fado, mas ainda não sei se já aprendi a lição completa.

Fala-se muito de fado por esse mundo, cada pessoa tem a sua interpretação. Vou contar-vos a minha, nesta fase de vida, porque tudo evolui, nada é estático, e o que penso hoje pode mudar amanhã, embora os fundamentos se mantenham.

Sobretudo acho que o que acontece à medida que envelhecemos é que nos tornamos mais abertos a avaliar antes de julgar. É muito complicado explicar o que é o fado, porque não cabe nas palavras. Fado é um sentimento, é uma aceitação do destino que Deus nos deu.

Fado é o coração do meu povo, grande que cabe o mundo dentro, e pequenino quando sofremos, especialmente se for por alguém que nos preenche e sem quem, a vida não faz sentido.

Fado pode ser uma noite bem passada com os amigos numa tasca de Lisboa, alegre e boémia, ou uma solidão vazia de tudo, em busca de respostas a perguntas que nem sabemos colocar.

Com o fado ri-se a chorar e chora-se a rir. Com o fado vive-se e morre-se. Passa-se pelo mundo, onde cada um coloca uma semente no coração dos outros. A árvore que nasce, nuns csos dá fruto doce, noutros amargo.

Depende da semente que lá tenhamos deixado, neste tempo em que estivemos cá deste lado e a que convencionámos chamar vida. 

A vida tocada pela endometriose não é fácil, e as lágrimas não são raras. É difícil chegar ao fim do dia, saber que doeu e que não acabou. No próximo dia vai continuar, sem muita diferença. Cada um pode ter a sua opinião, mas para mim, a vida com endometriose é um fado.

Destino que Deus nos deu, sofrimento que nos arranca a alma e desfaz em farrapos sonhos e ilusões. São correntes que nos amarram e impedem de voar, como os outros que vemos livres como pássaros sem terem a noção da sorte que têm.

E vem a frustração, a raiva, o desespero, e, finalmente, o cansaço. Um cansaço que não passa com uma noite bem dormida ou umas férias. É um cansaço de já não ter mais forças nem vontade para lutar. De deixar ir, um cansaço de náufrago que se vê perdido no mar e percebe que por mais que faça, por mais que lute, não vai chegar a terra firme e é o fim da linha.

Chega a noite fria, e a solidão das águas por vezes leva alguns destes náufragos. Temos tido relatos de algumas portadoras que desistiram, que muito nos entristece. A maioria no entanto continua e a manhã traz de novo o Sol. E mesmo sem salvação à vista, continuam a resistir.

Mesmo no maior desespero, e sem réstea de esperança, continua-se em frente. Isto é fado e não é exclusivo dos portugueses. A forma como o expressamos é muito nossa, mas está por toda a parte.

É essa a razão pela qual tem sido alvo de admiração por pessoas do mundo inteiro, porque talvez sem o saberem explicar muito bem, quando o escutam sentem e sabem o que é, mesmo sem entenderem as palavras.

O fado como disse é riso e choro. Engloba a vida e a morte, a alegria e a tristeza com a mesma facilidade. Há quem ache que chorar é errado. Para mim, as lágrimas são a alma a lavar o corpo.

Se tiverem de chorar, façam-no sem receio. Deixem a vossa alma lavar-vos o corpo. Expurguem as mágoas, renovem as forças e sigam em frente, mesmo que tudo vos diga que é inútil. É que nas águas existe muita coisa, e por vezes surge algo que flutua e nos ajuda a descansar um pouco, e talvez a conseguir resistir a mais uma noite.

Para muitas portadoras, essa tábua de salvação que chega pode ser um namorado, um amigo, quem sabe um marido. Essa tábua não chega por acaso. Avaliem bem, e não a rejeitem, pois acredito que Deus dá o frio conforme o cobertor.

Nesta luta que tenho partilhado convosco, tenho enfrentado muitas noites à deriva com a minha esposa no meio das águas. É difícil, mas enquanto há vida há esperança. Eu ajudo-a a flutuar, e ela ajuda-me a encontrar o caminho.

Por ela tenho enfrentado coisas que nunca esperei conseguir. Ela tem feito de mim um homem melhor, e muito me honra com o seu amor e a sua gentileza, o cuidado com que me trata e o ter-me dado um lar no qual eu, ela e a Camila (a nossa cadela), somos uma família.

Com isto não quero dizer que o companheiro tenha de escolher ser um mártir, destinado a encontrar uma mulher que sofre e a ser a sua tábua de salvação. Esse homem não foi posto no mundo para encontrar alguém que foi destinada a sofrer.

Mas se o destino os juntou, e gostaram um do outro e aceitaram conscientemente o desafio, procurem não desistir.

Eu não desisto dela e não é por vaidade, ou por qualquer razão de querer mostar-me mais nobre do que os outros. É porque encontrei o amor da minha vida. Porque para mim, é ela a minha tábua de salvação. Quem salva quem não se sabe. Mas quando o coração ama com generosidade de parte a parte, talvez se salvem um ao outro.

No último dia 3 de junho fez 8 anos que nos casámos. Já cheguei a comentar que parecem 30 anos, e houve quem não entendesse isso e achasse que era cansaço. Pelo contrário, é como se já tivéssemos vivido uma vida inteira juntos, e se eu pudesse vivia muitas mais com ela.

Dava a minha vida para lhe tirar o sofrimento, mas como não tenho essa capacidade, dou a minha vida para lho aliviar como posso. E faço-o sorrindo, felizes à nossa maneira. Eu não estou com a minha esposa por causa da endometriose, mas apesar da endometriose.

Essa condição física não a define. Se as asas dela não conseguem voar, pois vôo eu pelos dois. Somos como dois copos de água, quando um está mais baixo o outro verte um pouco para encher o que está mais vazio. Habituámo-nos a confessar um ao outro.

Partilha é isso, é permitir que a outra parte veja as nossas fragilidades, medos, anseios e confiar. É por isso que ela tem conseguido fazer de mim um homem melhor, porque eu lhe estendo as ferramentas para que ela vá esculpindo.

Não tive uma vida fácil, e quando ela me conheceu eu estava muito magoado por muito que tinha já passado na vida. É preciso dar um passo de fé, arriscar, ser magoado novamente. Só quem arrisca colhe os frutos. Oferecer o coração a alguém tem esse problema; pode ser esmagado ou seguro com gentileza e remendado.

Ela estava na mesma condição. Confiámos um no outro, fomos sinceros e milagre… funcionou. Mas se não tivessemos já sofrido antes, não teríamos crescido e não estaríamos preparados para este encontro.

Nunca se esqueçam, quem chega não tem culpa dos erros dos outros. Não passem a factura para que o justo pague a conta do pecador e talvez venham a ter uma agradável surpresa.

Este texto é dedicado à mulher mais especial de sempre, com quem tenho o grande prazer de partilhar a vida, e que com a sua generosidade compreende e aceita o tempo que uso para vos apoiar, a minha esposa.

Um abraço ao doutor Alysson Zanata, que muito generosamente tem sido um pilar desta equipe, traduzindo textos por vezes complexos para leigos, ajudando a elevar o nível do trabalho que tem sido publicado em vosso benefício e de forma gratuita para portadoras, seus companheiros, amigos e familiares.

Não posso também deixar de agradecer à Caroline pela coragem de se manter à frente deste projecto por tantos anos, por ter aceite o desafio de liderar a EndoMarcha no Brasil e por fazer o impossível para gerir a sua vida pessoal e ainda tudo o que está relacionado com as publicações do blog e a marcha.

Muito pouca gente tem a noção da enormidade desta tarefa, mas posso garantir que não é para qualquer um.

A todos os leitores, um abraço fraterno. Saibam que não estão sozinhos. Infelizmente existe muita gente que conhece a vossa realidade. Unam-se, lutem juntos por um futuro melhor e mais humano.

Um dia o sofrimento terá fim e voltaremos a sorrir mais frequentemente. 

Deixo-vos com um fado dos mais bonitos que já ouvi, numa interpretação magistral daquela que é talvez a maior fadista contemporânea: Mariza.

Prestem bem atenção na ligação que se estabelece entre ela, os músicos e o público. E agora meus amigos e amigas, peço silêncio que se vai cantar o fado. Um grande abraço.

Fonte imagem: DepositPhotos/ Caroline Salazar

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