Eu já começo o texto dizendo, sim a endometriose é uma doença que pode levar algumas mulheres à incapacidade de exercer suas funções. Eu disse funções, sim no plural, pois há anos a mulher acumula a dupla jornada de cuidar da casa, que muitas vezes além do trabalho doméstico engloba filhos e marido, e a profissional. Confira no texto alguns complicações da endometriose.
Há pouco mais de um mês venho sendo bombardeada por mensagens para compartilhar o link de uma proposta que poderá levar os senadores a pensarem na hipótese de tornar a endometriose como doença incapacitante pelo Instituto Nacional do Seguro Social, o famoso INSS, que já está falido.
Como principal ativista hoje na causa no Brasil, eu preciso pensar sempre no coletivo, o que vai ajudar mais e mais mulheres. Precisamos de leis para endometriose no Brasil?
Siiiiiiiiiiiiiiiiiim e muitas, não só uma, mas como se diz no meu estado natal: “Não podemos passar o carro na frente dos bois”.
Primeiro precisamos analisar a situação do trabalhador brasileiro. Ou melhor, da “trabalhadora”, a mulher que poderá se beneficiar do resultado. E, segundo, a questão da capacitação médica, que eu até colocaria como mais importante, mas vamos começar do começo.
O Brasil seria um país mais justo se a maioria das pessoas tivesse seu trabalho reconhecido de acordo com as leis. Com a grave crise que o país enfrenta desde 2015, muitos trabalhadores perderem seus empregos e, para não passarem fome ou verem suas famílias nesta situação, tiveram de partir para a informalidade.
Os dados assustam. São cerca de 12 milhões de desempregados. Um aumento de 37% em relação a 2016. Segundo o pesquisador Giovanni Pinto Alves, da Universidade Estadual Paulista (UNESP), mais da metade dos brasileiros trabalham sem carteira assinada.
De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) do último trimestre de 2016, cerca de 45% do trabalho ativo no país, estimada em cerca de 90 milhões de pessoas, está na informalidade. Ou seja quase a metade da população, pois já somos quase 207,7 milhões de brasileiros (incluindo crianças e idosos).
É o dobro da população da Argentina. Destes a maioria é mulher, claro: 44% contra 37% dos homens. Então, se a minoria está com a carteira assinada, como estas irão receber o benefício?
A outra alternativa para ter o benefício assegurado pelo INSS é pagando a guia de autonômo, o que poucas pessoas o fazem, seja por falta de grana ou qualquer outro motivo. Vejo por minha história.
Eu passei por isso. Minhas dores chegaram num ponto que não conseguia sair da cama. Nem mesmo morfina, tramal, codeína faziam efeito. Como jornalista eu nunca fui registrada. E não pagava o carnê de autônoma. Ou seja, eu não existia para o INSS.
Assim como eu, milhares de mulheres que estão na informalidade também não existem para o INSS. Então, ao invés de fazer o caminho na contramão, por que não fazemos o correto?
Antes de ter esse direito é preciso que a doença seja reconhecida como social e de saúde pública. Ter o reconhecimento do INSS não vai ajudar nenhuma endomulher a ter tratamento gratuito pelo SUS.
Até porque no próprio site do senado de 75 propostas que ultrapassaram 20 mil apoios, 11 se tramitaram na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) para debates dos senadores, e até o momento, apenas uma (isso mesmo!), uma foi convertida em Projeto de Lei. E ainda não é lei, é apenas um “projeto”.
Você sabia que já existe uma portaria no Ministério da Saúde para que haja tratamento da endometriose pelo SUS? E existe faz tempo viu. E mesmo assim é como se não existisse.
Um ambulatório do SUS em São Paulo, que até um ano e meio atrás tratava todas que o procurava, já não pode receber nenhuma paciente nova. O que precisamos é que a endometriose seja considerada uma doença de saúde pública que atinge boa parte da sociedade direta ou indiretamente.
Eu estou nesta luta há sete anos e oito meses e até hoje não vi essa união toda. É fácil fazer algo quando estamos atrás de um computador, mas vai dar sua cara a tapa?
Há quatro anos um médico americano criou um movimento mundial, a EndoMarcha, onde temos dia e hora para usar a favor de nossa luta, para ir atrás de nossos direitos e, mais do que isso, um dia onde também espalhamos os principais sintomas e complicações da endometriose.
Cadê essas mulheres de todo esse movimento que não vejo na EndoMarcha? Faça seu cadastro gratuitamente e participe deste movimento mundial. Nossa, em quase oito anos nunca li tanto “vamos nos unir compartilhe este link”. Cadê essa união toda que eu ainda nunca vi? Realmente acho que precisamos nos unir e sair dos grupinhos e da zona de conforto.
Bom, o segundo ponto diz respeito à capacitação médica. Repito: esse ponto para mim vem em primeiro lugar, mas neste texto tive de por os dados em números para ver se as pessoas conseguem fazer contas. Quando recebo alguma coisa falando sobre a perícia quase que 100% das mulheres não são aprovadas pela falta de capacitação dos peritos.
Se a maioria dos ginecologistas não conhece, não sabe o que é e muito menos tratar a endometriose, que tipo de conhecimento o perito do INSS tem?
Te pergunto: “O que vai adiantar o senado aprovar a incapacidade da endometriose, se o perito que irá examinar a mulher não sabe nada sobre a doença”? Até porque quem vai querer beneficiar uma pessoa que, para a maioria, não tem cura e é recorrente em quase 100% mesmo após cirurgia?
Pois é, esses dois mitos agravam ainda mais a situação de quem poderia receber o benefício. Quem vai aprovar um benefício às cegas, sem prazo para acabar. Já faz um tempo que dizem que a previdência está falindo.
Não vou entrar na discussão da reforma da previdência porque não vem ao caso. Vocês sabiam que em 2016 o déficit do INSS foi de quase 86 bilhões.
E também não vou entrar na questão de que sempre vai ter alguém querendo ser “a esperta” e tentar receber o benefício mesmo não sofrendo com as dores incapacitantes.
Se nem os aposentados recebem suas aposentadores direito – dizem os economistas que em 15 anos esse dinheiro vai acabar -, de onde virá o pagamento das endomulheres? Quem vai pagar?
É lamentável ter certeza que a maioria das portadoras se contenta com pouco, com muito pouco, e pensa apenas em seu próprio umbigo.
Precisamos sim, antes de tudo, o reconhecimento da doença para que haja maior capacitação médica.
Somente assim, com diagnóstico precoce e maior entendimento dos especialistas sobre a doença, sobretudo, de como fazer uma cirurgia correta retirando toda a doença, é que iremos começar a mudar nosso triste destino e salvar vidas das novas gerações de portadoras.
Por Caroline Salazar
Edição: doutor Alysson Zanatta
Fonte imagem: Pixabay