Os 10 motivos porque ainda acreditamos que a endometriose surge da menstruação retrógrada!

0

O principal problema da endometriose é entender sua origem. Afinal, como tratar uma doença corretamente sem saber sua causa?

Apesar de ser a teoria mais disseminada para explicar a endometriose, a teoria de Sampson ou da menstruação retrógrada apresenta falhas desde seu início como já falado em alguns textos do doutor David Redwine.

Neste texto, publicado no blogspot em novembro de 2016, o doutor Alysson Zanatta lista os 10 motivos pelos quais ainda se acredita que a endometriose é causada pela menstruação retrógrada e esclarece o que a ciência já comprovou sobre a doença.

Desde os primórdios da civilização, o útero sempre foi ‘culpado’ por todos os problemas da mulher e com a endometriose não está sendo diferente.

Acreditar que a endometriose surge com a menstruação acarreta muitos problemas à mulher, pois além de a doença nunca ter cura, ainda contribui para mutilações desnecessárias, entre muitos outros.

Compartilhe mais um texto exclusivo do blog A Endometriose e Eu e ajude-nos a levar uma nova conscientização da endometriose. Beijo carinhoso! Caroline Salazar

Os 10 motivos porque ainda acreditamos que a endometriose seja causada pela menstruação retrógrada.

 

Por doutor Alysson Zanatta
Edição: Caroline Salazar

Em artigo recentemente traduzido “Sampson estava errado?” (leia parte 1 e parte 2), o doutor David Redwine discorre sobre a teoria da menstruação retrógrada como explicação para a origem da endometriose.

Essa teoria foi proposta em 1927 por John Sampson e hoje ainda é a teoria mais aceita para explicar a doença.

No artigo, o doutor Redwine explica as múltiplas falhas dessa teoria e a sua completa falta de comprovação científica. Ao final, sintetiza os achados de outros pesquisadores (alguns que antecederam John Sampson) e propõe que a teoria da metaplasia celômica pode explicar com maior exatidão os mecanismos da doença. 

Segundo essa teoria, células indiferenciadas presentes desde o período embrionário (quando as mulheres ainda estão se formando no útero de suas mamães) se transformam, sob estímulo de estrogênio e ao longo da vida da mulher (talvez até os 25 a 35 anos de idade), nas lesões de endometriose que identificamos na mulher adulta.

Há de se destacar que o doutor Redwine escreveu esse artigo antes de surgirem os primeiros estudos que comprovaram a presença de endometriose em fetos (de 2009), o que reforça ainda mais a teoria da metaplasia celômica ou de origem embrionária que passa por metaplasia celômica.

E, diferentemente da invasão tecidual por células da menstruação, o achado de endometriose em fetos é um achado de verdadeira comprovação científica.

Mas, se temos provas que existe endometriose em fetos e se, por outro lado, não temos provas que células endometriais refluídas com a menstruação possam “invadir” os órgãos e se transformarem em endometriose, por que ainda acreditamos que a menstruação seja a causa da endometriose?

Vejam os 10 motivos pelos quais a mentira da menstruação retrógrada como causa da endometriose tornou-se, infelizmente, uma verdade:

1 – O útero sempre foi a causa dos problemas das mulheres: na idade média, acreditava-se que o útero era um órgão que se movia pelo corpo, um ser voraz e que, quando não tratado adequadamente, manifestava sua ira na forma de dores e doenças.

Uma das doenças era a histeria ou loucura. Histeria é derivada de histero, que significa útero em grego. Ou seja, a loucura seria causada pelo útero.

As cólicas e os sangramentos excessivos significavam que o útero precisava ser “alimentado” e recomendava-se atividade sexual como forma de tratamento.

Em suma, todos os esforços deveriam ser feitos para acalmar o útero.

 A ideia de que o útero seja o grande responsável por doenças femininas é viva e muito presente no dia de hoje. Prova é que a histerectomia (cirurgia de retirada do útero) é a cirurgia ginecológica mais realizada no mundo. A histerectomia costuma ser recomendada para diversas causas de dor pélvica, mesmo quando não há causa identificada de doença no útero, como é o caso da endometriose. Muitas mulheres persistem com dores após a histerectomia, mostrando que o útero não era a causa da doença.

2- Os sintomas da endometriose costumam ser mais intensos durante a menstruaçãoa dismenorreia (cólica menstrual) é o sintoma típico da endometriose, especialmente quando acompanhada de sinais vagais (náuseas e vômitos, queda de pressão, sensação de desmaio).

Além disso, lombalgia, dores nas pernas, alterações intestinais (intestino “mais solto”) e urinárias são mais intensas e frequentes durante o período menstrual.

Portanto, é fácil deduzir que a causa das dores seja a menstruação.

Acredita-se que durante a menstruação a endometriose estaria “aumentando”, estaria “se espalhando” pela pelve. Leia o texto “Distribuição da endometriose pélvica de acordo com faixa etária e fertilidade”

Fato é que muitas mulheres com endometriose veem a menstruação como um fantasma e sentem que sua doença está aumentando a cada mês que menstruam, sentindo pânico por menstruarem.

Felizmente isso não acontece. Como destacado, não há provas do evento básico que explicaria a menstruação retrógrada como causa da endometriose: a capacidade da célula endometrial proveniente da menstruação aderir e invadir os órgãos da pelve.

3- Os sintomas da endometriose costumam melhorar com medicações hormonais que suspendem a menstruação: os anticoncepcionais, na forma de pílulas, injeção, dispositivos intrauterinos (DIU) ou outros, costumam melhorar as dores causadas pela endometriose e até mesmo fazê-las desaparecerem.

Assim, se a mulher interrompe sua menstruação e se ao mesmo tempo as dores melhoram, conclui-se que a causa das dores seja a menstruação.

Essa conclusão costuma ser extrapolada ao ponto de se dizer que as medicações estão “tratando” a doença, fazendo-a “diminuir ou desaparecer”.

Sim, é fato que os hormônios podem controlar a dor (entretanto, com respostas variáveis e temporárias) e eles podem ser importante ferramenta no manejo da endometriose.

Mas infelizmente nenhuma medicação hormonal é capaz de tratar a endometriose, tratá-la no sentido de erradicá-la, fazê-la desaparecer.

O principal efeito é no controle da inflamação que ocorre nas lesões. Mas as lesões persistem independentes do tempo e de qual hormônio é utilizado. 

Seria mais correto afirmarmos que as medicações são capazes de controlar a dor da endometriose, total ou parcialmente.

4 – Os sintomas da endometriose costumam desaparecer durante a gestação e a amamentaçãoaqui, o raciocínio é o mesmo para o uso de medicações que suspendem a menstruação.

Mulheres grávidas ou que estejam amamentando não costumam ter dores de endometriose.  Assim, conclui-se da mesma forma que a menstruação estava sendo o motivo da doença, pois, como houve a gestação e a amamentação, a menstruação foi suspensa naturalmente, então as dores melhoraram.

Outra extrapolação dessa teoria (e mito) é que a gravidez “trataria” a endometriose. Infelizmente (e novamente), isso não acontece.

As lesões de endometriose persistem exatamente iguais após a gestação, podendo estar menos inflamadas e até mesmo deixarem de causar dor. Mas ainda estarão lá, presentes.

5 – Existem diferentes tipos de endometriose, mas elas são interpretadas de forma única: há três tipos de endometriose: (a) peritoneal; (b) profunda; e (c) ovariana. Endometriose peritoneal é aquela lesão superficial e identificada apenas durante procedimentos cirúrgicos.

Endometriose profunda é aquela que forma nódulos (enrijecidos, irregulares), capazes de serem detectados durante o exame ginecológico e por profissional capacitado no exame de imagem (ultrassonografia transvaginal com preparo intestinal e/ou ressonância magnética da pelve).

Já a endometriose ovariana é aquela presente na forma de cistos achocolatados, os endometriomas, que são facilmente detectados à ultrassonografia, porém já representando uma fase avançada da doença.

Os endometriomas são consequência da endometriose profunda. Praticamente não existe endometrioma sem endometriose profunda (associação maior que 99%). Leia o texto “O Verdadeiro Significado do endometrioma de ovário”.

Mas apesar das lesões terem formas e comportamentos distintos, elas são estudadas e interpretadas como se fosse uma única doença.

Quase todos os estudos científicos são realizados com endometriose peritoneal, onde é possível sim reproduzir e mimetizar uma lesão de endometriose de forma experimental.

As conclusões obtidas nos estudos de endometriose peritoneal são então, erroneamente, extrapoladas para as outras formas da doença, que são diferentes.

Prova que são diferentes é que, mesmo com modernas ferramentas e pesquisadores capacitados, não é possível desenvolver experimentalmente a endometriose ovariana ou a profunda.

Jamais conseguimos produzir endometriose ovariana ou profunda em laboratório.

De maneira simplificada, tente injetar sangue menstrual no intestino ou em um ovário de um camundongo e observe se haverá formação de endometriose. Não, esse não é um evento biológico que acontece.

Décadas atrás tentou-se injetar sangue de puérperas (mulheres com parto recente) em suas próprias paredes abdominais para testarem a possibilidade de se formar o endometrioma de parede (uma forma de endometriose profunda).

Pasmem, essa foi uma pesquisa realizada em uma maternidade norte-americana na década de 1950, estudo que seria inaceitável nos dias de hoje.

O que aconteceu? Nada. Não houve endometriose, pura e simplesmente. Felizmente também não houve maiores complicações com esse experimento absurdo.

Assim, conseguimos reproduzir em laboratório apenas a endometriose peritoneal.

Mas, deduz-se erradamente que todas as formas da doença sejam iguais e que sejam causadas pela menstruação. A extrapolação equivocada das conclusões dessas pesquisas colabora para a perpetuação da mentira da teoria da menstruação retrógrada.

6 – A mídia propaga a teoria da menstruação retrógrada: médicos capacitados (e que por cima ainda são excelentes comunicadores) revezam-se diariamente na mídia escrita e televisiva (programas matinais, etc.) para falarem sobre saúde.

E quando o assunto é endometriose, um dos primeiros tópicos abordados é a teoria da menstruação retrógrada. Aqui, novamente, é uma mentira repetida várias vezes tornando-se uma verdade. 

Não porque sejam maus profissionais (pelo contrário, reitero que costumam ser os melhores), mas porque estão repetindo informações que lhes foram ensinadas nas faculdades, que lhes foram passadas pelos seus assessores, mas que não têm comprovação científica.

As consequências da propagação da teoria da menstruação retrógrada na mídia televisiva podem ser extremamente desastrosas.

Falamos de milhões de mulheres que podem ter acesso a apenas essa fonte de informação, sem a possibilidade de consultas com especialistas ou acesso a outras fontes de informação.

7 – A indústria farmacêutica propaga a teoria da menstruação retrógrada: graças aos esforços e pesquisas da indústria farmacêutica, hoje podemos contar com medicações capazes de controlarem (em maior ou menor grau) a dor da endometriose, e de proporcionarem melhor qualidade de vida às mulheres. Isso é fantástico.

E para comercializar seus produtos, a indústria vale-se do marketing.  Isso é natural em qualquer negócio. Entretanto, no caso da endometriose, esse marketing pode ser agressivo e levar a conclusões equivocadas.

Pense comigo: se a infecção é causada por uma bactéria, e eu comercializo um antibiótico, nada mais natural do que eu fazer marketing demonstrando qual é essa bactéria e os malefícios que ela pode causar, pois eu comercializo justamente o antibiótico capaz de matar aquela bactéria.

Ora, se eu comercializo uma medicação capaz de suspender a menstruação e controlar a dor da endometriose, eu buscarei divulgar que a endometriose é causada pela menstruação, pois eu comercializo justamente a medicação capaz de suspender a menstruação!

Não haveria nada de mal nisso, fosse a endometriose causada pela menstruação. Mas não o é. Não há provas que a menstruação retrógrada cause endometriose.

Então, como propagandear um fato que não tem comprovação científica?

A bula de uma conhecida pílula lançada no mercado há alguns anos começa com a seguinte frase “a endometriose é causada pela menstruação…”.

É a primeira frase da bula. O marketing que nós médicos recebemos dos laboratórios é essencialmente direcionado à teoria da menstruação retrógrada.

Isso não causaria grandes problemas, não fosse o fato de que alguns médicos têm como fonte de informação científica exclusiva aquela recebida dos laboratórios, por vezes enviesada.


Repito que a possibilidade de termos medicações capazes de controlar a dor da endometriose é algo fantástico. Mas devemos ser cautelosos com o tipo de marketing realizado. É como dizer que um iogurte tem os mesmos nutrientes que uma carne, por exemplo, algo que também não tem comprovação científica.

8 – Futuros médicos são ensinados que a endometriose é causada pela menstruação retrógrada: como ex-professor de Ginecologia da Universidade de Brasília, pude contribuir e vivenciar o ensino aos futuros médicos. E como dizer algo diferente do que está nos livros-textos?

Não é simples. Por vezes você certamente pode ser interpretado como “maluco”!

Mas fato é que os livros continuam a trazer a teoria da menstruação retrógrada como a principal explicação para a endometriose, por motivos que já destaquei, dentre os quais o principal é a extrapolação de conclusões de pesquisas com endometriose peritoneal.

E, se futuros médicos são ensinados assim, é possível que a teoria da menstruação retrógrada ainda se perpetue por um longo tempo. É necessário que se quebre o ciclo de propagação de informações sem comprovação científica, por mais desafiador que se possa parecer.

9 – A endometriose é visualmente identificada (ou não) de diferentes maneiras por diferentes médicoscomo falar de uma doença que pode ser “enxergada” (ou não) de diferentes maneiras por diferentes médicos?

10 diferentes médicos não teriam dificuldade em identificar e retirar um bebê durante uma cesárea. Mas 10 diferentes médicos poderiam identificar as lesões de endometriose de 10 formas diferentes durante as cirurgias ou simplesmente não as identificar. Esse é um dos grandes desafios da endometriose.

Para exemplificar, sugiro às mulheres que passaram por laparoscopia a mostrarem as imagens de suas cirurgias para diferentes médicos.

Pasmem, vocês certamente ouvirão diferentes opiniões.

Ouvirá relatos como “não há nada, está tudo normal”, ou “são apenas aderências”, ou “há pequenas lesões de endometriose, sem maior gravidade”, ou então “há várias e graves lesões de endometriose, como posso ver aqui, aqui e aqui…”.

Ressalto, diferentes médicos vendo as mesmas imagens. E porque isso acontece? Não necessariamente há “maus e bons médicos”, mas sim diferentes experiências.

Novamente, nos remetemos à formação médica nas universidades, aos nossos livros-texto e professores, e o que eles nos mostram como sendo lesões de endometriose.

Meu cérebro só será capaz de identificar uma lesão de endometriose se eu tiver visto antes uma lesão de endometriose, se alguém tiver me falado que aquela lesão é endometriose, se eu acreditar que realmente possa ser endometriose e removê-la em sua totalidade e se a biópsia confirmar que aquela lesão é endometriose.

Se nunca me mostraram (ou se eu não tive o interesse de aprender) como é uma lesão de endometriose intestinal, ou uma lesão profunda retroperitonial “escondida” atrás das “aderências”, então eu jamais serei capaz de identificar o que é endometriose.

O mesmo raciocínio vale para os exames de imagem (ultrassonografia transvaginal com preparo intestinal e/ou ressonância magnética pélvica), onde apenas alguns profissionais serão capazes de “enxergar” onde está a endometriose profunda.

Pois então, se eu não consigo identificar visualmente a doença, como entender sua evolução e história natural?

Parece mais óbvio então eu concluir que, quando eu identificar as lesões, elas foram causadas pelas últimas menstruações, ao invés de concluir que ela já poderia estar presente há muito mais tempo, só que não era identificada.

Não enxergar a endometriose significa não tratar a endometriose. Não enxergar a endometriose significa perpetuar a noção de que ela seja causada por menstruação retrógrada.

 10 – A teoria da menstruação retrógrada justifica todas as falhas terapêuticas: e por último, o mais importante, conforme destacado no texto referência do doutor David Redwine. Dizermos que a menstruação causa endometriose justificará, automaticamente, a persistência da endometriose após qualquer tipo de tratamento realizado, seja com uma pílula ou uma fertilização para engravidar ou uma cirurgia.

A teoria da menstruação retrógrada justifica as múltiplas cirurgias que algumas (não raras) portadoras de endometriose sofrem ao longo de sua vida.

A mulher estaria fadada a conviver para sempre com uma doença crônica, sem cura, até o momento de sua menopausa, pois ela sempre vai menstruar e a endometriose sempre voltará.

Seria muito melhor se, ao invés de justificarmos as falhas terapêuticas, encontrássemos maneiras eficazes de tratar a doença.

Conclusão:

Vários fatores contribuem para a perpetuação da teoria da menstruação retrógrada como causa da endometriose, proposta por Sampson em 1921.

Fatos seculares (o útero como causa das doenças femininas) e modernos (propagação pela mídia), associados à dificuldade de identificação da endometriose nos exames e mesmo durante as cirurgias, são responsáveis pela infeliz perpetuação dessa teoria.

A discussão da origem da endometriose é de extrema importância, até mesmo mais importante que a discussão de tratamento clínico ou cirúrgico da doença.

Entendida a doença, entendidas serão as maneiras de tratá-la. Os progressos serão então concretos e milhões de mulheres ao redor do mundo terão a chance de viverem livres da doença. 

Imagem: Deposit Photos/ Caroline Salazar

Comments are closed.