Eu sempre ouvi que a endometriose é uma doença bengina e que não mata. Escutei isso várias vezes e conforme fui me aprofundando nos estudos sobre esta terrível doença ficava perplexa sobre seu comportamento.
Ok, hoje nem mesmo o câncer e ou a AIDS é uma sentença de morte, eu sei disso. Mas eu nunca entendi porque a sociedade coloca a endometriose sempre atrás dessas doenças. Porque a maioria dos médicos falam de boca cheia que a doença é benigna.
Benigna significa o quê? Que não mata? Já contamos aqui no A Endometriose e Eu a história do falecimento de nossa querida endoirmã, Dalvanir, em uma homenagem de seu companheiro no dia que ela faria seus 43 anos de vida. E ela não foi a única a perder sua vida decorrente da endometriose.
Ao contrário da Suelen, que faleceu por complicações após sua cirurgia, Dal, como era carinhosamente chamada por Vlademir com quem conviveu os últimos 17 anos, faleceu numa enfermaria à espera de sua terceira cirurgia. Fico pensando se sua primeira cirurgia tivesse sido bem-sucedida, ela poderia estar viva?
Chorei ao editar este texto. Não só por imaginar o sofrimento de Dalvanir, mas de pensar que muitas neste momento estão passando por isso. Principalmente aquelas que dependem do Sistema Único de Saúde (SUS), que não era o caso de Dal, que morava em Natal, no Rio Grande do Norte, e estava internada num hospital particular.
Chorei por pensar que poderia ter sido eu a ter este mesmo fim. Precisamos mudar esta triste realidade. Não podemos deixar mais nenhuma Dalvanir, Suelen, Juliana, Priscila, Elisângela, entre muitas outras, perderem suas vidas e entrarem para a estatística. Aliás, estatística esta que nem existe, afinal, a endometriose não mata.
Precisamos nos unir e mostrar como a doença pode sim ser terível e cruel. Quantas perdem parte ou seus órgãos inteiros. Já escutei que a endometriose é um câncer benigno. Oi? Me diz uma doença benigna que mutila a mulher?
Me diz uma doença benigna que leva tão rapidamente uma pessoa à depressão? Que rouba os sonhos de muitas atigidas por ela? Que faz muitas que estão em depressão tentar tirar sua própria vida? E ainda a endometriose não mata!
Mais um texto que vai levar muitas pessoas à reflexão. Precisamos dar um basta na ignorância que permeia a endometriose. Muito obrigada, Alexandre, por dividir mais um texto conosco. A EndoMarcha Time Brasil marchará de luto no próximo dia 24 de março em homenagem às nossas endoirmãs que partiram. Beijo carinhoso! Caroline Salazar
Por Vlademir Alexandre
Edição: Caroline Salazar
Endometriose não mata, mas sou viúvo.
O que será das nossas mulheres, as que nos dão as mãos e dedica seu carinho, seu cuidado e seu companheirismo assumindo o belo e o tortuoso caminho da vida conjugal, e das mulheres que num ato de pura expressão da existência sublime da concepção de vida, dão à luz e nos põem neste plano tido por terreno, às vezes, pedregulhoso, resvaloso, outras de campos floridos?
Essas mulheres que serão nossas filhas, nossas irmãs, nossas amigas, comporão a extensa latitude de pessoas que dão valor e completam a essência da existência humana.
Esta é uma carta de dor, mas a cima de tudo, de amor. Esse sentimento que trago, se aponta como lâmina afiada que, por vezes, resvala me arrancando da pele da alma. Saudade e saudosismo, sim, este o cabo que puxa uma dor de quem perde valor imensurável na vida.
Não há revolta, tão pouco lugar a insana tristeza. Há sensatez na minha dor, pois quero recriar com essa dor alternativas a continuar se dedicando a um legado deixado por uma história que não pode e não deve ser submetida a nada menos que a beleza absoluta de tempos de construção, de cumplicidade e de parceira.
A evolução só é possível quando compartilhar se torna entrega e recepção de si e do outro, sem que cada um deixe de ter a beleza de ser o brilho que iluminou o encontro.
A companheira que me deixou no dia 22 de novembro de 2017 sofria de um desses males que levam às mulheres, tantas delas, ao sofrimento, à anulação e, por fim, muitas vezes a sair precocemente de nossas vidas.
Me disseram que a endometriose não mata, mas sou viúvo.
Passei três anos acompanhando a evolução do quadro de minha companheira, portadora de endometriose profunda grau 4 – uma doença agressiva e que provoca dores intensas que não sou capaz de mensurar -, que a medicina brasileira pouco avançou no cuidado e na abordagem sensível a cada caso exposto.
E estamos falando de uma doença que atinge milhares de mulheres. Porém os pífios avanços e os procedimentos padronizados e pela pura falta de humanidade no atendimento, vão provocando distorções, efeitos colaterais fora de controle e entendimento pela medicina atual.
Por vezes senti a conduta de “segredo” no diagnóstico, de dúvida escondida na autoridade médica. Minha companheira faleceu de morte súbita, aguardando uma cirurgia em uma enfermaria de hospital.
Sua causa mortis: choque hemorrágico por hemoperitônio causado por endometriose. Mas, sempre nos disseram que a endometriose não mata? Pois é, mas ela levou minha companheira, assim como tantas outras devem ter ido também.
Há que se mudar algo nas políticas públicas referente à saúde da mulher. Não é possível aceitar que mais da metade da população brasileira – sim, as mulheres já são mais de 50% – tenha seus principais problemas de saúde relegados a segundo plano.
E não digo isso pela dor da perda de uma mulher essencial em minha vida. Falo por aquelas que estão sofrendo, por aquelas que ainda vão sofrer e por aquelas que ainda vão morrer pelo que ainda não foi feito, pelo que não foi debatido, pesquisado e, principalmente, pelo elemento humanizado que se perde nas condutas tecnocratas, burocráticas e no ambiente de saúde humana que se contamina por interesses de mercado.
Este não é um manifesto contra a classe médica, muito menos um ato de revolta à saúde de meu país. É um ato de amor ao próximo (a), um apelo a quem possa escutar abstendo-se do aparelho auditivo. Dessa forma, possa se permitir a audição da alma, esta que nos define humanos.
O esforço que desprendo em minhas palavras se compõem de reflexos e vivências de ser homem e nem por isso deixando de saber da importância fundamental da mulher, da histórica carga de injustiças nas quais elas ainda estão expostas.
A solidariedade de gênero deve, a meu ver, avançar para um lugar equânime. As mãos dadas, símbolo de quem caminha junto, deve ampliar-se aos horizontes da ciência e dos cientistas. Não há saída para uma sociedade que não sabe o valor de um abraço.
A condição de viúvo imposto de forma súbita, inesperada e envolta sob o manto do desconhecimento dos riscos reais, potencializado pela não condição de escolhas em procedimentos, baseados no saber de suas sequelas, me expos a uma dor profunda.
Hoje, viver luto e seguir a luta, são os exercícios mais rudes de uma cotidiana tentativa em atravessar a solidão que consome o destino de quem fica. Marquei em minha pele por um desenho meu, signos que remetem a nossas vivências, assim, a sinto mais perto.
Em janeiro, me lancei a uma travessia pelo Brasil, de moto percorri só 9.800km. Fui de Natal a Porto Alegre, retornei pelas serras do Rio do Rastro e subi a Serra da Canastra com destino à cachoeira Casca D’anta, onde havíamos planejado ir juntos, e fomos, agora em planos distintos.
Retornei na busca de ir transformando e resignificando a partir do tempo e dos ensinamentos das estradas e das vivências de solidariedade humana que me ajudaram no sentido de recompor a estrada da vida.
Nossos planos juntos eram muitos e diversos. Dal adorava planejar. Havia proposto destinos para todo o ano de 2018, mas sei que ela seguiu firme e positiva até seu último dia nesta morada. E eu sigo grato por tê-la em minha vida como dádiva e exemplo humano de amor e de solidariedade.
Esperançar, deixar que a luz que construímos em nosso íntimo resplandeça e nos guie a fundar um novo homem e seguir honrando uma relação de carinho e cumplicidade, estes sentimentos norteiam o meu constante esforço de transpor a dor da saudade.
Parafraseando Guimarães Rosa, Dalvanir “deixa de ser nome, para ser sentimento meu”.
Quando a luz está dentro de nós, fechar os olhos não trará escuridão.
Fotos: Vlademir Alexandre, arquivo pessoal