Neste texto, o doutor David Redwine fala sobre a persistência da endometriose e, consequentemente, dos sintomas da doença, mesmo após a retirada de todos os órgãos reprodutores. Isso acontece quando o útero, os ovários e as trompas são retirados, mas as lesões de endometriose não.
Ainda no século 21 há quem trata a endometriose com a retirada desses órgãos, especialmente o útero. Há ainda quem acha que a doença vem do útero e, portanto, a cura ou tratamento se dão com a retirada o útero pode curar a endometriose.
Esse desconhecimento contribui para a perda desnecessária desses órgãos e pior: sem retirar toda a doença, muitas continuam sofrendo. É importante lembrar que a doença do útero é a adenomiose. O doutor Redwine também explica sobre as consequência da menopausa precoce quando há a retirada dos ovários precocemente.
Em qualquer doença é preciso saber a causa para tratá-la efetivamente e com a endometriose não é diferente. Por isso a importância da disseminação de informações corretas, a única forma de prevenir as mutilações e salvar vidas de milhares de pessoas que sofrem com a endometriose.
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Endometriose persistente após histerectomia e salpingo-ooforectomia bilateral: remover a doença, não órgãos, é fundamental para o alívio de longo prazo
Por doutor David Redwine
Tradução: Caroline Cardoso
Edição e nota: doutor Alysson Zanatta
Médico para paciente: “Então, você tem endometriose. Bem, vamos remover seu útero, suas tubas e seus ovários. Esta é a única cura conhecida para a doença. Funciona assim: a endometriose vem do refluxo de sangue da menstruação que sai das extremidades das tubas de Falópio para dentro da cavidade abdominal carregando com ele células vivas do revestimento do útero. Essas células do refluxo endometrial se ligam a várias superfícies pélvicas, intestinais ou abdominais e começam a crescer. A remoção do útero vai parar o problema do refluxo menstrual, e a remoção dos ovários fará com que a endometriose suma para sempre.”
Paciente: “Eu não entendo bem. Por que você trataria uma doença cirurgicamente, deixando-a no lugar e removendo outra coisa? Podemos tentar remover a doença primeiro e ver o que acontece?”
Médico para paciente: “Essa não é a abordagem convencional para esta doença. Na verdade, acho que é inapropriado. O que descrevi é a terapia definitiva e aceita para a doença. Se você vai questionar minhas recomendações, talvez fique mais confortável se encontrar outro médico.”
Paciente: “Bem, acho que você é o médico. Ainda não tive filhos, mas minha dor é tão ruim, parece que não tenho alternativas. Se você diz, acho que está tudo bem.”
A maioria dos ginecologistas ensina que o tratamento definitivo ou permanente da endometriose é remover o útero, as tubas e os ovários, mas não a doença. Quantas mulheres ouviram isso ou algo parecido? Que evidências científicas embasam esse diálogo? Quão eficaz é a castração para alívio da dor relacionada à endometriose? O que acontece com pacientes com dor contínua após a castração, a “cura definitiva” para a endometriose? Essas são questões importantes.
A noção de que a castração destrói a endometriose deriva diretamente das observações de Sampson na década de 1920. Segundo ele, a endometriose raramente era vista após a menopausa. A partir dessa observação, há 70 anos (nota: há 70 anos quando doutor Redwine escreveu esse texto. Hoje em 2021 faz 100 anos), Sampson e outros médicos chegaram à conclusão de que a menopausa destrói a doença.
Ao explicar esse salto de fé, Sampson exaltava as supostas virtudes da menopausa e da castração: “Espero que o fim da função ovariana acabe com qualquer tecido endometriótico deixado na pelve para atrofiar”1 e que “[…] os implantes geralmente, possivelmente sempre, atrofiarão depois que todo o tecido ovariano for removido […] Todos eles provavelmente deixam de crescer e realmente se atrofiam após a menopausa”2.
A noção de que a menopausa erradica ou cura fisicamente a endometriose é tão poderosa que ninguém pensou que era importante provar essa tese. Nenhum estudo científico até o momento provou que a menopausa erradica a endometriose.
Isso é particularmente significativo, uma vez que a terapia médica da pseudomenopausa moderna baseia-se na presunção de que a endometriose é fisicamente destruída e erradicada (não apenas suprimida) por algum efeito mágico, ainda não descrito, de baixos níveis de estrogênio que duplicam os efeitos curativos da menopausa.
A maioria dos ginecologistas ensina que o tratamento definitivo ou permanente da endometriose é remover o útero, as tubas e os ovários, mas não a endometriose. Geralmente não é ensinado que, em vez desse procedimento primário, deve-se remover a endometriose.
Uma revisão da literatura sobre o tratamento da dor associada à endometriose mostrou que quanto mais estruturas pélvicas/órgãos pélvicos forem removidos cirurgicamente, mais provável ocorrer o alívio da dor 3.
Embora isso pareça validar a utilidade funcional da remoção dos órgãos pélvicos para retenção da endometriose, não há dúvida de que a doença pode permanecer sintomática após a menopausa, mesmo sem terapia com estrogênio 4. Como, então, um médico pode saber, no momento da remoção dos órgãos pélvicos, se a endometriose deixada para trás será sintomática? A resposta é: ele não tem certeza.
No entanto, existem algumas pistas que podem ajudar a prever a continuidade dos sintomas mesmo após essa cirurgia “definitiva”. Demonstrou-se que pacientes com doença invasiva do assoalho pélvico, incluindo a obstrução do fundo de saco, estavam sobre-representadas em um grupo de pacientes com dor e endometriose persistente após a castração 5.
A obstrução do fundo de saco significa que o reto tornou-se aderente ao tecido cicatricial na parte posterior do colo do útero. Isso implica uma possível presença de endometriose invasiva na parte traseira do colo do útero, ambos os ligamentos uterossacrais, o fundo de saco e a parede frontal do reto. O tratamento cirúrgico completo deve levar em conta tudo isso.
Noventa e seis por cento das pacientes com endometriose apresentam doenças em áreas que não seriam removidas apenas pela retirada dos órgãos pélvicos 5. Em outras palavras, a retirada dos órgãos pélvicos removerá toda a endometriose em apenas cerca de 4% das pacientes. Se a doença retida é superficial, isso pode não causar problema. Se a doença é invasiva, é mais provável que permaneça sintomática após a retirada dos órgãos pélvicos.
Porém, a endometriose invasiva do assoalho pélvico e da parede frontal do intestino representa um problema de tratamento para muitos ginecologistas. Nem todos os cirurgiões são experientes na identificação de endometriose severa ou na eficiente técnica de resseção em bloco 6.
No momento da histerectomia, nem todas as pacientes estão com o intestino preparado, então, mesmo que visível a gravidade do envolvimento intestinal, não é muito seguro tratá-lo cirurgicamente.
Um cirurgião geral chamado na sala de cirurgia pode se recusar a operar uma paciente já que podem não ter encontrado a doença, ou por falta do preparo intestinal, ou porque consideram a remoção dos órgãos pélvicos um tratamento adequado.
Embora a remoção dos órgãos pélvicos e a retenção de endometriose possam frequentemente aliviar a dor, por que isso funciona?
Ainda não sabemos por que a endometriose causa dor, uma vez que muitas lesões não estão associadas à hemorragia adjacente, no entanto é claro que a dor não se deve ao sangramento adjacente à endometriose.
Sendo uma estrutura glandular, presumivelmente a endometriose esconde algo que irrita o tecido circundante, promove a fibrose local e ocasionalmente desestabiliza os capilares próximos, resultando em sangramento adjacente às lesões endometrióticas.
Não obstante nunca se tenha demonstrado que a falta de estrogênio erradica a doença, não há dúvida de que a endometriose pode responder ao estrogênio, apesar de frequentemente a resposta das lesões individuais ser diferente.
O grau de resposta da endometriose provavelmente depende do nível e da atividade dos receptores de estrogênio nas lesões. Isso poderia explicar por que a endometriose pode ser vista e se comportar de forma diferente, ainda que na mesma pelve, com algumas lesões superficiais restantes, enquanto outras se tornam invasivas e cercadas por fibrose ou hemorragia.
Os ovários produzem estrogênio que irriga diretamente os tecidos endometriais adjacentes com altos níveis desse hormônio. Quando os ovários são removidos, essa irrigação direta cessa de modo que a atividade das lesões diminui.
Mesmo que o estrogênio seja administrado por pílulas, emplastros ou injeções, o nível sanguíneo que atinge as lesões endometrióticas é menor, portanto elas não são tão estimuladas. O resultado final é menos dor para muitas mulheres submetidas a histerectomia e castração, mesmo que a endometriose seja deixada no lugar.
Entretanto, é importante ter em mente que nem toda dor pélvica é causada pela endometriose. Algumas dores que podem ser aliviadas pela histerectomia/castração advêm de problemas com o útero ou os ovários, não necessariamente da endometriose.
Portanto, a histerectomia/castração para “dor de endometriose” parece melhor do que realmente é. Isso ajuda a ampliar artificialmente o benefício aparente desse procedimento aos olhos de cirurgiões ocupados, que o veem como um procedimento muito eficaz e útil, mas isso pode estar mostrando uma resposta dos sintomas, e não da doença.
Com que frequência a histerectomia/castração para endometriose funciona?
A experiência e algum estudo preliminar indicam que, na verdade, essa abordagem geralmente funciona, embora talvez não seja o suficiente. Um estudo de acompanhamento7 demonstrou que 7% das mulheres submetidas a histerectomia/castração para curar endometriose apresentaram sintomas recorrentes e 1,7% necessitaram de reoperação.
Entre 1982 e 1984, aproximadamente 130.000 histerectomias foram realizadas anualmente em função da endometriose. Isso significa que cerca de 9 mil mulheres por ano podem ser sintomáticas após histerectomia/castração para curar endometriose e mais de 2 mil por ano podem estar em risco de reoperação.
Se a cada ano milhares de pacientes idosos ou homens não fossem ajudados por um procedimento cirúrgico, haveria uma tremenda precipitação política, mesmo que a maioria estivesse sendo ajudada.
Como as mulheres com dor devido à endometriose não são devidamente valorizadas na sociedade como os idosos ou os homens, as coisas simplesmente seguem caminhando.
O que acontece com uma paciente com dor contínua após a remoção dos órgãos pélvicos e a retenção da endometriose?
Muitas tentam viver com isso, algumas utilizam drogas para suprimir a função do ovário (mesmo que não tenham ovários), outras são encaminhadas para clínicas de dor ou psiquiatras, porque elas são informadas: “é impossível ter endometriose após esse tipo de cirurgia”.
Essas pacientes geralmente passaram por múltiplas tentativas médicas ou cirúrgicas para tratar a doença antes da remoção dos órgãos pélvicos, de modo que elas literalmente já fizeram de tudo, exceto uma coisa: a doença não foi removida. Quando isso finalmente for feito, a maioria das mulheres conseguirá alívio significativo da dor.8
Sou contra a histerectomia ou os cirurgiões que a realizam?
Claro que não. É um procedimento muito útil para problemas uterinos que não respondem a tratamentos conservadores. O estudo de Maine sobre histerectomia encontrou uma alta taxa de sucesso e satisfação das pacientes após o procedimento, seja por que motivo tenha sido realizado 9.
Faço minha parte, em pacientes com ou sem endometriose, porém tento reservar a histerectomia para pacientes com sintomas que sugerem que o útero é um problema, como a adenomiose.
Embora possa ser bem-sucedida no alívio dos sintomas, a realização de uma histerectomia com a ideia de curar a endometriose não é cientificamente sólida, especialmente se não foi feita nenhuma tentativa para remover completamente a doença.
Nota do Revisor: a grande causa de falhas no tratamento da endometriose é a premissa, o dogma, de que a doença seja causada pela menstruação retrógrada.
Assim como em outras situações, é desta premissa que se origina o conceito de que a histerectomia e/ou ooforectomia (retirada dos ovários) possa curar a doença, como descrito neste texto do doutor Redwine.
Assim, a ação mais efetiva para que possamos avançar no tratamento clínico e cirúrgico da doença é explicar, de maneira mais sólida, a origem e história natural da endometriose.
Nos dias de hoje, as teorias embrionária – já comprovada pela ciência – e de metaplasia celômica são aquelas que podem melhor explicar a doença.
1- Sampson, J. A. (1921). Perforating hemorrhagic (chocolate) cysts of the ovary. Archives of Surgery, 3, 245-323.
2 – Sampson, J. A. (1922). Ovarian hematomas of endometrial type (perforating hemorrhagic cysts of the ovary) and implantation adenomas of the endometrial type. Boston Medical and Surgical Journal, 186, 445-56.
3 – Redwine, D. B. (1992). Treatment of endometriosis-associated pain. In: Olive, D. L. (Editor). Endometriosis: Infertility and Reproductive Medicine Clinics of North America (pp. 697-720). Philadelphia: WB Saunders.
4 – Kempers, R. D., Dockerty, M. B., Hunt, A. B., & Symmonds, R. E. (1960). Significant postmenopausal endometriosis. Surgery, Gynecology, and Obstetrics, 3, 348-356.
5 – Redwine, D. B. (1994). Endometriosis persisting after castration: Clinical characteristics and results of surgical management. Obstetrics and Gynecology, 83, 405-413.
6 – Redwine, D. B. (1992). Laparoscopic en bloc resection for treatment of the obliterated cul-de-sac in endometriosis. Journal of Reproductive Medicine, 37, 695-698.
7 – Namnoum, A. B., Hickman, T. N., Goodman, S. B., Gelbach, D. L., & Rock, J. A. (1995). Incidence of symptom recurrence following hysterectomy for endometriosis. Fertility and Sterility, 64, 898-902.
8 – Berger, G. S. (1993). How many women are affected by endometriosis? Contributions to Gynecology and Obstetrics, 47-60.
9 – Carlson, K. J., Miller, B. A., & Fowler, F. J. Jr. (1994). The Maine Women’s Health Study: I. Outcomes of hysterectomy. Obstetrics and Gynecology, 83, 556-565.