Repassando os textos do blogspot para esse blog me deparei com essa tradução sobre endometriose em homens trans e achei pertinente trazer essa discussão no “Março Amarelo” por ser um mês de mais visibilidade para a doença. De 2014 para cá, quando publiquei esse texto, pela primeira vez, ainda não se fala de endometriose em transexuais, seja homem ou mulher.
Se nós já achamos que somos invisíveis e incompreendidas pela sociedade, imagine os homens e mulheres trans? Precisamos incluí-los na nossa luta, dar voz, mostrar que elxs existem. Somos muito mais que #1em10. Somos muito mais de 10 milhões de pessoas que sofrem com a endometriose.
Precisamos discutir a questão de gênero também na endometriose para que todes se sintam incluídos. Cada vida que sofre com a endometriose importa. Não podemos excluir ninguém. Eu sei como essa dor é dilacerante. Se já não acreditam em nós, imagine nelxs?
A endometriose é uma doença muito além do gênero feminino. Na tradução abaixo, você vai sentir o sofrimento de Luke Fox, um homem trans, e sua luta para conseguir diagnóstico e tratamento adequado ao seu corpo. E se com as mulheres já oferecem a rodo histerectomia, imagine com homem trans?
Esse é outro tema do texto e achei muito importante a visão do autor quando lhe foi sugerido a castração apenas por ele ser um homem trans. É urgente a necessidade de inclusão das pessoas trans nas comunidades de endometriose.
Em 2022 teremos uma campanha no A Endometriose e Eu, no EndoConectadas e nas nossas redes. Somos muito mais de 10 milhões de brasileiras e todes devem sair da invisibilidade. Beijo carinhoso! Caroline Salazar
Endometriose e Transgênero: uma doença além da saúde reprodutiva e de gênero.
Por Luke Fox
Tradução: Alexandre Vaz
Edição: Caroline Salazar
A endometriose é uma doença ainda pouco compreendida, pouco diagnosticada, mas que afeta uma parte significativa da população feminina. Tipicamente é classificada como uma doença ginecológica que afeta os órgãos reprodutores femininos ou a região pélvica. Existem claro, manifestações da doença que podem surgir em outras partes do corpo e que não possuem relação com a região pélvica, ainda que a endometriose seja comumente referida como uma doença feminina.
Existe um corpo de investigadores pesquisando mulheres com endometriose e as suas experiências de vida, bem como fazer para tratar mulheres com endo, do ponto de vista clínico.
Mas o que acontece se a pessoa com endometriose não é uma mulher?
Existem casos documentados de homens cis (nota do tradutor: cisgênero termo usado para pessoas cuja identidade de gênero corresponde ao seu sexo biológico) que apresentam endometriose na próstata, geralmente identificada quando seus corpos recebem estrogênio (já publicamos dois textos no blog – texto 1 e texto 2).
Tenho certeza de que existem outras formas da endometriose se manifestar em um corpo masculino, mas a pesquisa existente ainda não é extensiva o suficiente para que possa comentar como desejaria sobre o número de homens cis afetados pela doença.
Fora do universo binário de homens e mulheres afetados pela doença, existe uma população de transexuais que também têm suas vidas afetadas pela endometriose diariamente, cuja experiência não é alvo de pesquisa e essencialmente são eliminados da comunidade global de portadores de endometriose.
Não pretendo diminuir a importância da experiência das mulheres com a doença, que sofrem bastante para ter acesso ao tratamento médico adequado, sistemas de apoio, no entanto, acredito que é igualmente importante expor a realidade do que significa viver com uma doença vista como sendo de um gênero sexual, quando não se pertence a um sistema binário.
Tenho vivido com endometriose faz 13 anos. Foram 11 anos e 2 cirurgias antes de receber meu diagnóstico. Olhando para o meu caso, não parece diferente dos muitos que existem por aí, exceto que eu não sou uma mulher. Sou uma pessoa transsexual com uma doença que é vista como exclusivamente feminina.
É difícil abordar esse tópico em uma comunidade que historicamente tem expressado uma ideologia muito centrada na mulher, deixando muito pouco espaço para criar uma abordagem mais inclusiva e descentrada de gênero para uma doença que simplesmente afeta corpos.
Não posso falar por todos os homens trans, pois cada pessoa, independente da identidade de gênero, terá uma experiência única com a doença. Isso não significa que não possa existir sintomas que se sobreponham, ou experiências transversais a qualquer gênero com a doença.
No geral, a minha experiência de conseguir um diagnóstico não é muito diferente da maioria das mulheres. Pelo simples fato que são realizados exames e mais exames, são feitas perguntas invasivas, e opiniões forçadas de gravidez e histerectomia, ou remédios bastante potentes. Onde a minha experiência difere é na forma como cada um desses processos afetou a minha vida e a tomada de decisão sobre a endometriose.
Uma das maiores dificuldades é conseguir acesso a tratamentos baseados nas necessidades específicas do meu corpo. Durante a fase de diagnóstico, escondi dos médicos a minha identidade transsexual por receio de me tirarem o acesso aos cuidados de saúde e tratamentos adequados.
Eu já tinha dificuldade em responder a perguntas em torno da minha atividade sexual, já que as minhas experiências não correspondem ao questionário simplista de perguntas sobre penetração e de ter um parceiro homem cis.
Em cada exame ou ultrassom eu tinha longas conversas acerca da possibilidade de ter sido abusada sexualmente, pois era tão desconfortável receber exames pélvicos e ultrassons transvaginais, que eu tinha de lutar para segurar as lágrimas, enquanto os profissionais forçavam os instrumentos dentro do meu corpo. Todo exame físico era uma invasão que eu sabia ser necessária, mas que não pertencia ao meu corpo.
No passado disseram para eu fazer uma histerectomia, simplesmente porque os médicos achavam que seria uma solução mais fácil para aliviar a minha dor. Recebi a mesma pergunta de várias pessoas que conheço, questionando porque eu não aceitava essa solução já que sou transsexual.
A verdade é que eu simplesmente quero manter a minha fertilidade como qualquer outra pessoa que deseja ter filhos no futuro. Ser transsexual não significa que não quero ter filho, ou que esse meu desejo seja menos importante.
Agora que os meus médicos sabem da minha identidade sexual, estou atravessando novos níveis de dificuldade na minha doença. Um novo conjunto de desafios e barreiras. De repente, uma simples alteração na minha identidade no prontuário, os fez questionar a legitimidade de eu fazer meu tratamento.
O que antes era uma proposta normal para fazer uma histerectomia, agora está sendo examinado como algo que eu estou potencialmente abusando do sistema médico como parte da minha identidade de gênero, e não minha longa luta contra a endometriose, a angústia física, mental e emocional que tenho tido todos esses anos.
As minhas decisões sobre quais medicamentos que eu gostaria de usar, se aceito tomar algum, foram recebidas com grande debate. E teve médicos que me falaram que nos meus encaminhamentos não desejam me identificar como transexual por receio de que isso irá afetar os resultados dos tratamentos.
Em muitos aspectos eu tenho muita sorte por hoje estar sendo acompanhado por médicos que me e apoiam na minha saúde, embora tenha sido uma grande luta para encontrar esses mesmos profissionais.
Embora eu tenha escondido minha identidade de gênero em grande parte da minha luta para receber um diagnóstico, nem todos têm a sorte de conseguir iludir profissionais durante tempo suficiente para iniciar um tratamento.
Existe um documentário sobre homens transsexuais com câncer ovariano, intitulado de “Southern Comfort” (Conforto do Sul), que documenta bem a luta real de alguns homens para acessar tratamento para uma doença em espaços identificados como específicos para mulheres, tais como um consultório de ginecologia, ou clínica de ultrassom.
Conseguir apoio tem sido extremamente importante e uma parte significativa da minha capacidade de viver com a endometriose. Embora sinta frequentemente que tenho bom acolhimento no meu grupo de apoio local, geralmente sinto isolamento nas minhas experiências.
As comunidades e grupos de endometriose gosta de se referir às portadoras como senhoras, moças, endoirmãs ou endoguerreiras, o que para alguém como eu significa exclusão. Eu sei que pertenço a uma minoria de pessoas com endometriose que não se identifica com esses termos, mas isso não faz com que eu não mereça pertencer, ou que a minha experiência com a doença não seja importante.
Penso que pode ser problemático unir o gênero a qualquer doença, já que o gênero está tão complexamente relacionado com construções sociais e sistemas de opressão, poder e controle. As doenças não conhecem as fronteiras dessas construções sociais.
Tal como a endometriose já foi considerada como uma doença da mulher branca que faz carreira profissional, hoje sabemos muito bem que a endometriose não discrimina classes sociais, estruturas raciais e não consigo ver como pode ser diferente com a questão de gênero.
Muitas pessoas que não se encaixam nos moldes de uma definição estabelecida podem facilmente ficar isoladas, marginalizadas, estigmatizadas e discriminadas. Numa comunidade de pessoas em que todas sofrem bastante por conta de uma doença debilitante, é de cortar o coração saber que alguém ainda possa ser marginalizado dentro dessa comunidade, como alguém que é “outro”, muitas vezes de formas sem qualquer intenção.”
A inclusão e o livre acesso à informação beneficiarão todos que enfrentam a endometriose em qualquer fase de sua vida. Ações excludentes criam uma comunidade enfraquecida, e aspectos importantes na pesquisa da doença podem ser ignorados.
Espero avançar com a minha consciência da endometriose, com a esperança de que todas as pessoas afetadas pela endometriose tenham representatividade, e não excluídas por linhas invisíveis.
Atualização feita pelo autor em 2018:
Faz pouco mais de quatro anos desde que escrevi meu primeiro artigo sobre ser homem trans e viver com endometriose. Desde então, houve um aumento na conscientização pública sobre as pessoas trans.
Conversas sobre inclusão trans têm ocorrido em toda a América do Norte, e dentro do Canadá existem agora proteções federais para identidade de gênero e expressão de gênero. Então, o que mudou, e como está meu cuidado agora desde que essas mudanças aconteceram?
Texto publicado no blog do blogspot em 15 de abril de 2014
Fonte: Hormones Matter