A busca pelo “Santo Graal” no diagnóstico da endometriose!

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Em um texto brilhante, o doutor Alysson Zanatta faz uma reflexão sobre a importância do avanço no diagnóstico precoce e melhor entendimento da endometriose. Hoje, a média é de 7 a 12 anos. É muito tempo para quem sofre com as dores incapacitantes da doença.

O cirurgião excisista fala sobre os desafios para o diagnóstico e os avanços para o presente e para o futuro. Infelizmente, um dos maiores desafios da endometriose vai muito além do diagnóstico precoce.

É preciso que os cirurgiões passem a conhecer e a reconhecer todas as manifestações da doença e que se especializem na cirurgia que retira todo o foco. Este é um dos pontos altos do texto, quando ele explica por que é preciso urgentemente maior capacitação médica .

Já não bastam os anos e décadas de sofrimento que a mulher passa, quando ela vai para cirurgia, além de a doença não ser totalmente retirada pela cirurgia de cauterização, as várias manifestações (cores e tipos) da endometriose não são reconhecidas pela maioria dos cirurgiões.

E isso precisa mudar urgentemente, porque são milhões de vidas sofrendo. E pior do que sofrer sem diagnóstico, é sofrer ainda mais após a cirurgia, pois muitas saem com mais dor do que antes da operação. E é somente com a fusão cirurgia de excisão + reconhecimento das manifestações que haverá mais tratamento efetivo da doença.

Outro ponto que o doutor Alysson chama atenção no texto é sobre a teoria embionária x menstruação retrógrada. Ele comenta por que a teoria de Samspon não foi comprovada e por que a doença não pode ser considerada autoimune.

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Por doutor Alysson Zanatta
Edição: Caroline Salazar

A Busca pelo “Santo Graal” no Diagnóstico da Endometriose

Reproduzido com autorização, Revista SGOB – Associação de Ginecologia e  Obstetrícia do Distrito Federal –

set-out/2015

Diagnosticar a doença não é apenas assunto médico. É assunto da mídia e, principalmente, da população geral.

Assim como a maioria das doenças, o diagnóstico precoce da endometriose é fundamental para um tratamento efetivo e mudança de sua história natural. Nesse sentido, a busca pelo “Santo Graal” para o diagnóstico da endometriose é incessante.

Busca-se algum método não invasivo, possivelmente um biomarcador que seja reprodutível, acessível e específico o suficiente para que o diagnóstico seja feito sem a necessidade de cirurgia.

Para tal, há mais de 100 marcadores descritos, o mais conhecido é o CA-125. Infelizmente, nenhum deles com suficiente predição positiva para aplicação clínica da endometriose (1) . 

Condizente com a importância e a popularidade do tema, a mídia tem destacado os louváveis esforços da jovem pesquisadora Georgia Gabriela, 19 anos, natural de Feira de Santana/BA (nota da editora: isso aconteceu em 2015 ano de publicação deste texto no blogspot). 

Georgia foi aceita em Harvard (além de outras 8 universidades norte-americanas), e desenvolverá pesquisas também na busca de biomarcadores passíveis de uso prático diário e implementação na rede pública.

A jovem baiana estudou, inicialmente no Brasil, a prolactina, a progesterona, a testosterona e o CA-125 como métodos diagnósticos. O maior mérito de Georgia não é ter estudado marcadores para o diagnóstico da endometriose, ainda que tenham se mostrado ineficazes em oportunidades anteriores.

Seus grandes méritos são o seu propósito de avanço e a sua visão abrangente sobre a endometriose como doença de cunho social, cujas manifestações palpáveis (lesões ovarianas, nódulos de endometriose profunda) representam já fase avançada de doença que se iniciou precocemente.

Os avanços mais recentes no diagnóstico da endometriose ocorreram justamente no campo do diagnóstico dessas lesões tardias da endometriose: as lesões profundas.

Na última década, os exames de imagem (ultrassonografia transvaginal com preparo intestinal e a ressonância magnética pélvica com gel vaginal e contraste endovenoso) mostraram-se eficazes e precisos no diagnóstico da doença profunda e ovariana.

Porém, esses exames mostraram-se efetivos apenas quando realizados por profissionais capacitados ao diagnóstico da doença, o que demonstra a necessidade de aumento da sua reprodutibilidade.

Apesar dos avanços, ainda é pouco. Há muito mais para se avançar.

Desafios para o diagnóstico:

Como falarmos do diagnóstico de uma doença cujo padrão-ouro de diagnóstico (aparência visual durante a laparoscopia) pode não ser reprodutível?

Por exemplo, concordamos que não há dúvidas quanto à aparência de um endometrioma ovariano (massa cística de conteúdo achocolatado). Entretanto, o mesmo não acontece com as lesões peritoneais, e, principalmente, com as lesões profundas.

Quanto às lesões peritoneais, somos ensinados que elas se mostram tipicamente na forma de lesões hiperpigmentadas (Figura 1), eventualmente brancas ou vermelhas. Nossos livros-texto estão cheios dessas imagens.

Além do mais, as lesões hiperpigmentadas nos saltam aos olhos durante a laparoscopia, o que não acontece com as demais lesões, que serão identificadas apenas por minuciosa inspeção.

Saibamos, porém, que as lesões hiperpigmentadas representam apenas 40% de todas as lesões de endometriose, e que até dois terços das pacientes com endometriose não têm nenhuma lesão hiperpigmentada (2). 

Ou seja, se entendermos que a endometriose é representada apenas por essas lesões, teremos até 60% de chances de diagnóstico incorreto, mesmo com a laparoscopia. 

Figura 1: Lesão hiperpigmentada típica de endometriose (seta). Essas lesões representam apenas 40% do total das lesões (2).

E o que dizer da endometriose profunda? Aqui, o desafio é ainda maior.

A teoria da “ponta do iceberg” é bastante atual para explicar a gravidade do problema. Em sentido figurado, quando identificamos uma lesão de endometriose durante a cirurgia, é possível que estejamos enxergando apenas a sua “ponta”, e que quase toda a doença esteja subjacente no retroperitôneo, como um iceberg submerso.

As Figuras 2 a 4 ilustram o sentido figurativo da expressão “ponta do iceberg”. As imagens são de uma paciente de 36 anos com dores pélvicas e progressivas há 5 anos, além de infertilidade primária e uma falha de fertilização in vitro.

Ela foi encaminhada devido ao achado ultrassonográfico de “nódulo em fórnice vaginal de 1 cm que pode corresponder à endometriose”. Não havia diagnóstico clínico de endometriose, apenas o diagnóstico ultrassonográfico, apesar do nódulo exteriorizar-se pela vagina (Figura 2).

A impressão laparoscópica inicial poderia ser facilmente aquela de lesões peritoneais inócuas (Figura 3), dado o seu aspecto relativamente benigno.

Tratava-se porém, de nódulo maior e profundo ocupando ambas as fossas pararretal e vaginal, de íntima relação com ureter, vasos uterinos e nervos viscerais até a sua exteriorização pela vagina (Figura 4).

Infelizmente, não há muitas dessas figuras em nossos livros-texto. Tampouco haverá muitas oportunidades em nossas universidades para realização de tais cirurgias, por motivos diversos que fogem a essa discussão.

Figura 1: Lesão hiperpigmentada típica de endometriose (seta). Essas lesões representam apenas 40% do total das lesões (2).

Figura 3: Aspecto “inócuo” de lesão de endometriose profunda (setas). A lesão pode facilmente ser confundida com endometriose peritoneal, dada seu aspecto branca, hiperpigmentada, e focalmente hipervascularizada. Ut = útero; LUS = ligamento úterossacro esquerdo.

Figura 4: Lesão de endometriose profunda das figuras 2 e 3 (traçado). A lesão estende-se desde a superfície peritoneal até exteriorização pela vagina. Ao fundo, nota-se a vagina aberta (vag) com probe em seu interior (*). Ut = útero; Ur = ureter; LUS = ligamento úterossacro esquerdo.

Em resumo, até mesmo a laparoscopia, o padrão-ouro de diagnóstico da endometriose, pode não ser reprodutível. É possível que, se você mostrar imagens de laparoscopias a dez médicos, talvez ouvirá dez opiniões diferentes.

Pode ser que simplesmente não tenhamos sido ensinados a identificar visualmente a endometriose. Vejam o tamanho do desafio.

Avanços para o presente:

As possibilidades mais concretas de avanços no diagnóstico da endometriose estão no presente. Há de se reduzir o tempo médio de 7 a 12 anos para o diagnóstico após o início dos sintomas.

Há de se reduzir o número médio de 6 a 7 médicos de diferentes especialidades pelo qual passa uma mulher antes que possa receber o diagnóstico definitivo da doença (3) .

Medidas simples seriam uma maior valorização da dismenorreia na adolescência, e também do achado de endometrioma às ultrassonografias tradicionais. Por exemplo, sabe-se que 70% das adolescentes com dismenorreia refratária a analgésicos têm endometriose, já em fase tão precoce da vida (4) .

Assim, o uso mais disseminado da laparoscopia na adolescência poderia certamente reduzir o tempo do diagnóstico. Outra regra simples é o melhor entendimento do endometrioma.

Quando este for diagnosticado (fato comum à maioria das mulheres como primeiro diagnóstico da doença), devemos entender que o endometrioma representa doença avançada e tardia, com lesões associadas de endometriose profunda presentes em até 99% dessas mulheres (5).

Outra real possibilidade de avanço no diagnóstico da endometriose seria a capacitação de maior número de profissionais para o diagnóstico por imagem, seja à ultrassonografia transvaginal, seja à ressonância magnética pélvica.

Com o aumento da capacitação, viria o aumento da reprodutibilidade, essencial para qualquer ato médico que se mostre efetivo. Os exames de imagem nos permitem não apenas um melhor diagnóstico, mas também um seguimento das pacientes para monitorização das respostas aos tratamentos (clínico e/ou cirúrgico).

A abordagem deve ser simples e objetiva: o diagnóstico da endometriose é feito inicialmente pela história clínica e por exame de imagem com mapeamento das lesões profundas e ovarianas. Opta-se pelo tratamento clínico e/ou cirúrgico.

Se o optar pela cirurgia repete-se o mesmo exame e com o mesmo profissional 4 a 6 meses após o tratamento. Se houver doença, admite-se que ela seja persistente, (nota da editora: que a doença continua porque não foi retirada totalmente na cirurgia) e não recorrente (nota da editora: que a doença voltou).

Se houver melhora clínica (na ausência de medicações hormonais) e não houver sinais de doença ao exame de imagem, admite-se que o tratamento tenha sido efetivo e a doença erradicada.

Essa estratégia será possível apenas se houver profissionais capacitados ao diagnóstico por imagem, com reprodutibilidade dos resultados. E isso mudará para sempre a maneira como enxergamos a doença.

E, por último, há necessidade de um aprofundamento no ensino médico da doença. Entendermos que a endometriose seja causada por menstruação retrógrada e que suas manifestações principais são lesões hiperpigmentadas e “aderências” é muito pouco, além de ser incorreto e atrasar inovações.

Há de se focar na identificação visual de todos os tipos de lesões – saiba mais no texto: “A aparência visual da endometriose e o seu impacto sobre nossos conceitos da doença” -, especialmente as lesões profundas.

Para esse tipo de lesão em especial, o diagnóstico correto passará, obrigatoriamente, pelo aprofundamento do ensino de técnicas cirúrgicas e de anatomia pélvica. Leia o texto: “A evolução da cor da endometriose relacionada à idade

É necessário que conheçamos detalhadamente a anatomia retroperitoneal e que tenhamos desenvolvido habilidades cirúrgicas. Caso contrário, jamais chegaremos às lesões profundas de endometriose e, portanto, jamais as diagnosticaremos.

Todas essas medidas não requerem maiores investimentos em pesquisas da endometriose. Requerem apenas capacitação e entendimento correto da doença.

Avanços para o futuro:

Existem mais de 8500 artigos científicos publicados sobre endometriose apenas nos últimos 10 anos. Boa parte direcionados ao seu diagnóstico.

As linhas de pesquisas são múltiplas, passando por mediadores imunológicos, genes e proteínas relacionados à implantação endometrial e até substâncias ambientais exógenas como dioxinas e unha-de-gato!

Os estudos dos mediadores imunológicos, como interleucinas, linfócitos e células natural-killers baseiam-se na hipótese de que células endometriais livres na pelve deixariam de ser “atacadas” (ou fagocitadas, talvez) por eventuais “falhas” imunológicas, propiciando ao desenvolvimento da doença.

É a teoria autoimune da endometriose. Entretanto, a fagocitose de células endometriais na cavidade pélvica jamais foi comprovada. Tampouco que sejam “atacadas” por qualquer célula de nosso sistema imunológico.

De forma similar, estudos que comparam o endométrio tópico (da cavidade uterina) com a endometriose baseiam-se na hipótese de que a endometriose seria causada pela menstruação retrógrada, ou seja, de que células de nódulos de endometriose profunda no retroperitôneo (ou ovarianas) seriam as mesmas células originadas do endométrio tópico, após terem sido refluídas para a pelve.

Porém, essa “invasão” retroperitoneal (ou ovariana) por células endometriais tópicas jamais foi comprovada. Apesar da ausência de evidências diretas, cérebros brilhantes e incontáveis recursos financeiros são consumidos anualmente em pesquisas baseadas em fatos biológicos jamais comprovados.

Por outro lado, a constatação da endometriose em fetos humanos foi descrita, pela primeira vez, em 2009 (Signorile e colaboradores), sendo posteriormente confirmada por outros pesquisadores (6) .

Trata-se do maior avanço recente sobre a história natural e fisiopatologia da doença. É a confirmação de uma teoria de 150 anos (que antecede a teoria da menstruação retrógrada), segundo a qual a endometriose é uma doença embrionária.

A confirmação da endometriose em fetos abre caminho para novas linhas de pesquisa, baseadas em genes e proteínas envolvidos na embriogênese do sistema genital feminino, como o gene HOXA10 (7) , entre outros.

No futuro, é provável que tenhamos que estudar fetos e recém-nascidos de cobaias (quiçá de humanos, apesar das óbvias questões práticas e éticas), ao invés de continuarmos tentando induzir a endometriose experimentalmente.

Precisaremos entender melhor os mecanismos da metaplasia celular (transformação de um tipo celular em outro), já que as lesões de endometriose profunda são constituídas basicamente de células de músculo liso que passaram por metaplasia.

Por fim, precisaríamos talvez de algum método de diagnóstico não invasivo e funcional que detecte o metabolismo de células endometriais e a metaplasia celular, capaz de mostrar a todos (independente de seu treinamento ou habilidade cirúrgica) onde estariam as células de endometriose, mesmo antes que tornem nódulos de endometriose profunda.

Esse método seria análogo talvez ao que é hoje um PET-CT, usado para detecção do metabolismo de células cancerígenas. São apenas hipóteses e ideias para o futuro.

Conclusão:

Há necessidade de avanços no diagnóstico da endometriose, para que este seja mais precoce e mais reprodutível. Nesse sentido, busca-se uma “bala de prata”, um “Santo Graal”.

Um método que seja economicamente acessível, de fácil realização e efetivo (alta predição positiva). O “Santo Graal” é possível no diagnóstico da endometriose.

Antes que o alcancemos, será preciso “enxergarmos” e entendermos a doença, para que esforços financeiros e intelectuais sejam focados na direção correta. Grande abraço, Alysson.

Fonte imagem destaque: Deposit Photos/ Caroline Salazar
Fonte imagens texto: doutor Alysson Zanatta
Texto publicado no blogspot dia 30 de setembro de 2015

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