Por Caroline Salazar
Um dos meus textos que ajuda as leitoras a descobrir que tem endometriose é o primeiro artigo que escrevi para o Brasil Post em 2013, onde contei minha história – de muito sofrimento -, desde o início das ‘minhas dores’ até o diagnóstico da endometriose – 18 anos anos depois -, o que me levou a criar o blog A Endometriose e Eu, e por que me tornei ativista da causa no Brasil.
Na última semana, uma seguidora, a querida Clara, me falou que esse texto foi decisivo para ela ter certeza que tinha endometriose e ir atrás do diagnóstico. Ao tentar abrir o link, vi que o site não existia mais. O site, que era a versão brasileira do Huffington Post, saiu do Brasil e foi deletado. Os links não existem mais. Por isso tive a ideia de reproduzí-lo no blog com a versão atualizada, pois o texto era de 2013. Vamos lá!
Desde minha primeira menstruação, aos 13 anos, sempre tive muita cólica, dor nas pernas, mal-estar, inchaço abdominal… Porém, lembro-me que desde pequena, por volta dos meus 8, 9 anos, tinha as ‘minhas dores de lado’ que atrapalharam e muito minhas brincadeiras.
Alguns meses após a menarca comecei a passar muito mal. Foram 30 dias passando muito mal, mas como nenhum exame apontava nada, ao me verem cada dia pior – vomitava muito, tinha dores no lado direito do abdômen, mal conseguia mexer a perna e não conseguia andar – meus pais resolveram pedir para o médico ‘me abrir’.
Resultado: apêndice quase supurado. Fiz a cirurgia para retirada do órgão, aquela com corte do lado direito. Não sei o que poderia ter acontecido se meus pais não tivessem pedido para me abrir. Um grande absurdo, mas foi muito necessário.
Aos 15 anos voltei a sentir muitas dores abdominais, enjoos, vômitos, meu abdômen muito inchado, parecia que estava grávida. Até a blusa e o elástico da bermuda ao encostarem na barriga doía. Em quatro dias estava internada. O diagnóstico: cisto hemorrágico. Detalhe: quando me internei por eu ser muito nova, essa era a última e remota sugestão dos médicos.
Resultado: fiz uma cirurgia de emergência igual à cesárea para retirar o cisto. Fiz ambas as cirurgias na minha cidade natal no interior de Goiás.
Logo depois me mudei para São Paulo. Meus períodos menstruais continuaram muito dolorosos. E com o passar do tempo, as dores não melhoravam com analgésicos e começaram a se tornar insuportáveis.
Sentia muitas dores nas pernas, ardência. Era um peso que parecia que eu carregava um chumbo com elas. Ficava cansada com facilidade.
No período menstrual sentia também dores na lombar, meu abdômen ficava muito inchado, como se eu tivesse grávida, comecei a evacuar apenas diarreia, mas com o tempo passei a ficar dias, semanas sem evacuar.
Dez anos depois da minha cirurgia de cisto, nem uma caixa de analgésicos não melhorava as dores, que passaram a ser todos os dias: 7 dias na semana, 30 dias ao mês e 365 dias ao ano.
Doía para andar e até mesmo para respirar. Nesta época, passei a desmaiar do nada. Eu pensava que era pressão, mas depois comecei a reparar que esses desmaios eram bem diferentes dos de pressão baixa.
Lembro-me bem de outubro de 2006, quando conheci meu (na época) futuro (hoje ex) namorado, eu desmaiei. Ele ficou preocupado, desconversei e eu disse que deveria ser a pressão. Era o que eu pensara!
As dores estavam cada vez piores ao ponto de eu começar a urrar de dor. Mesmo quando não estava menstruada. Era normal acordar durante a madrugada gritando de dor.
Aí você me pergunta: “mas você não ia ao ginecologista?” “Sim, e eu era muito ‘caxias’ quando se tratava de minha saúde. Sempre falei que tinha cólicas horríveis, com dores que pareciam descer para as pernas, era como se essas dores andassem pelo meu corpo”.
Sentia dores pelo corpo todo e comecei a inchar muito a ponto de não conseguir usar calça jeans. Meu manequim aumentou dois números, e eu, que tinha sido atleta e até mesmo modelo durante a adolescência, estava cada dia mais ‘inchada’.
Fiquei anos e anos sem conseguir usar uma simples calça jeans. Dá para acreditar?! Era só legging! Que doença te impede de usar uma simples peça de roupa?
De repente comecei a ter dores durante a evacuação e a sentir desconforto durante o sexo! No começo era uma ardência leve que não me impedia de transar.
Com o tempo, a dor foi aumentando e deixei de ter uma vida sexual ativa como antes. E foi graças ao meu namorado da época (aquele do desmaio!), que descobri ser portadora de endometriose.
Ele foi trabalhar em um evento que teve uma palestra sobre endometriose. Após escutar as explicações dos médicos, me ligou e disse: “Descobri o que você tem: endometriose”.
Até hoje fico emocionada ao lembrar-me deste dia. Fiquei tão, mas tão feliz por finalmente ter descoberto – mesmo sem nenhuma certeza ainda -, o que tanto me atormentava. Eu só não poderia imaginar a tortura que ainda viria pela frente.
A esta altura, início de 2009, eu já estava investigando o que poderia ser. Já tinha ido ao meu proctologista, médico da família e quem confiava para tentar descobrir o que eu tinha, fiz todos os exames solicitados, mas todos deram normais.
Ao escutar sobre endometriose, liguei para ele, que solicitou um exame específico. Como ele já sabia dos meus sintomas, com o resultado, fui diagnosticada com endometriose, uma doença que me deixou alguns anos na cama e que me levou para o fundo do poço.
Meu procto pediu para eu ir ao ginecologista. Na época tinha acabado de trocar de convênio e, consequentemente, de ginecologista. Já tinha ido a uma consulta, e confesso que não fui muito com a ‘cara’ dele.
Voltei lá com o exame e ao ouvir que eu tinha dores todos os dias, mesmo com o exame apontando a doença, ele disse que eu não tinha endometriose “por que quem tem endometriose só tem dores durante o período menstrual”, afirmou.
Voltei ao meu antigo ginecologista, que não era credenciado desse meu novo plano, e comecei o tratamento com anticoncepcional contínuo para bloquear a menstruação.
Se o outro ginecologista tivesse certo, com este tratamento, onde eu não menstruava mais, as dores deveriam melhorar, certo? Pois é, mas as dores pioraram. Parei de menstruar e as dores aumentaram.
No fim de 2009, uma amiga me ajudou a continuar o tratamento num centro especializado da rede pública, que hoje não aceita mais novas pacientes.
Foi lá que descobri que a dor durante o sexo tinha nome: dispareunia. E a minha ainda tinha sobrenome: de profundidade. Iniciei imediatamente o tratamento, a fisioterapia uroginecológica.
Depois descobri por jornalistas especializados em saúde, que fui a primeira mulher no Brasil a descrever minuciosamente a dor da dispareunia.
Na época trabalhava como repórter de entretenimento e estava em um site. Era dezembro e eu precisava de 3 sessões extras de fisioterapia. Pedi para trocar pelo meu horário de almoço, mas não teve jeito fui despedida. Fiquei muito mal.
A partir daí começou minha saga para conseguir um trabalho, mas nada! Fui vítima de preconceito, e mesmo eu falando que faria meu tratamento no horário do almoço, fiquei meses e meses, mas sem sucesso.
Sem fazer aquilo que eu realmente amo que é escrever, comecei a pirar, entrei numa depressão profunda, pois eu não estava inválida, precisava apenas de uma hora, uma vez por semana, para meu tratamento.
A endometriose mexe muito com a mulher fisicamente e psicologicamente falando. Mas eu ainda não sabia nada sobre a doença e na época era chamada de louca.
Em abril de 2010 criei o blog A Endometriose e Eu e comecei a relatar tudo o que se passava comigo. Porém, nunca imaginei que alguém iria lê-lo.
Ao fim de um ano tomando pílula contínua, e sem sucesso, induziram-me à menopausa precoce, aos 31 anos. Tomei a dose mais forte que duraria 6 meses.
Lendo a bula descobri que esse remédio é para vários tipos de cânceres (de mama, ovários, útero, próstata e etc) e no fim está a palavrinha endometriose.
Foi lendo essa bula que comecei a descobrir que essa doença de nome estranho, e totalmente desconhecida da sociedade, poderia ser muito séria.
Eu me perguntava: “por que essa bula só fala de câncer?” Mesmo assim a endometriose não é levada tão a sério como o câncer por que acham que ela não mata.
Ela pode matar como qualquer outra doença, como já contamos no blog, mas a endometriose mata a mulher que existe dentro de nós, e além de tudo, muitas não aguentam a incompreensão a sua volta e cometem suicídio.
O primeiro medo das mulheres quando são diagnosticadas com endometriose é a infertilidade. Nunca tive medo de não ter filhos. Eu só queria ter minha vida de volta. Porque nesta época, eu ficava na cama o tempo todo e só saía para trabalhar.
Meus amigos achavam que eu não saia porque namorava. Ledo engano! Eu sempre gostei de rua e não era um namorado que iria me proibir. Como não conseguia nem falar de tanta dor deixei as pessoas pensando o que queriam.
A indução à menopausa também não deu certo, a dor aumentou muito. Voltei ao meu proctologista por outro motivo, e quando ele viu que eu ainda estava morrendo de dor e sem ter feito a cirurgia, mais de um ano após o diagnóstico, ele me indicou um amigo ginecologista especializado na doença e em videolaparoscopia.
Continuei a fisioterapia para recuperar meu assoalho pélvico (a parte interna da vagina, os músculos). E em julho de 2010 fiz minha primeira videolaparoscopia.
O resultado: estava morta por dentro de tantas aderências pélvicas. Estava com pelve congelada. Tinha alguns órgãos sem funções dentro de mim (até hoje não perguntei quais eram!).
Os vários miomas que eu tinha uniram-se em um só. Sei que os focos de endometriose provocam sua própria inflamação, mas essa pelve congelada possivelmente foi causada pelas duas cirurgias abertas que mencionei no início do texto, a de apêndice e de ovário.
Nossa que alívio! Melhorei 50%, pois eu sabia que não tinha sido possível retirar todos os focos. Continuei o tratamento com pílula contínua, mas ainda sentia dores que foram aumentando progressivamente.
Um ano e 11 meses depois da primeira fui submetida à segunda videolaparoscopia. Bingo! Após 21 anos com dores severas diárias, finalmente fiquei livre delas.
Não tive nenhuma dor após a cirurgia. Simplesmente abri os olhos e até hoje, quase 9 anos depois – a serem completado em junho de 2021 -, nunca mais tive nada. Sinto-me completamente curada. Tenho uma vida normal, me alimento de forma saudável, mas não tenho nenhuma restrição alimentar.
Algo incrível para quem teve pelve congelada e muitas aderências, como eu, uma vez que para soltá-las precisa separar, cortar todos os tecidos. Por algum tempo pensei que seria preciso fazer alguma cirurgia de tempos em tempos por conta dessas aderências, mas tudo se resolveu.
Continuei trabalhando no blog à noite e nas madrugadas, pois após ficar bem voltei ao mercado de trabalho. Em 2012, o blog ganhou o TOP1 do prêmio Top Blog Brasil 2012, como o mais votado do Brasil na categoria saúde.
Foi nesse ano que conheci as ativistas americanas Nancy Petersen e a Heather Guidone que me apresentaram o doutor David Redwine. Curiosa e para cumprir meu papel de jornalista fui escutá-lo, e fiquei surpresa com todos os textos e estudos que ele me apresentou e está em seu site.
Propus uma parceria (exclusiva, claro) para traduzir todo seu site para o português e ele simplesmente amou a ideia. Comecei a traduzir seus textos e a estudar a doença de acordo com os ensinamentos do doutor David Redwine, que está sempre pronto para tirar qualquer dúvida, como um professor mesmo. E que professor, viu! Um gênio da endometriose!
Em 2013 concorremos de novo ao prêmio Top Blog Brasil e ficamos em 3º lugar. Final deste ano fui dispensada do trabalho e comecei a dedicar-me mais ao blog, a estudar muito mais sobre a doença e iniciei as parcerias com especialistas, e comecei a dar palestras de conscientização.
Desde 2010, o A Endometriose e Eu luta pelo diagnóstico precoce, pelos direitos das mais de 10 milhões de endomulheres, o reconhecimento da doença como social, e sem querer, em 2013 me tornei a principal ativista da causa no Brasil quando comecei a capitanear a EndoMarcha Time Brasil.
O texto original acaba aqui, pois foi publicado no site Brasil Post em 2013. Em 2014 engravidei, comandei a primeira EndoMarcha no país, e de lá para cá já se foram 7, na verdade 6, pois na 7ª edição estávamos no início da pandemia do novo coronavírus.
Em abril o blog completará 11 anos de vida e 9 que passa uma nova conscientização da endometriose. Mas por que ‘nova conscientização’?
Por que o A Endometriose e Eu é o único blog na língua portuguesa que mostra a endometriose sob uma nova perspectiva, relata os fatos que a ciência já comprovou e que até, então, não eram difundidos para a sociedade, desmistifica a doença, conta histórias de mulheres que não só recuperou sua qualidade de vida, mas que se curaram da doença, e luta pelos direitos das endomulheres, não só pelo dia e semana nacional, mas o direito de ter essas informações.
Há 8 anos e meio começamos a espalhar uma nova conscientização e também educar a sociedade, especialmente, as endomulheres, pois somente quem tem esse conhecimento irá atrás do tratamento mais efetivo possível, especialmente, quando precisar de cirurgia.
Em 2019 conheci a deputada Daniela do Waguinho, que encabeçou a causa, e juntas escrevemos o PL 3047/2019 (clique leia o texto) que foi apensado no 6215/2013, e muito em breve teremos nosso tão sonhado 13 de março como Dia Nacional de Luta contra a Endometriose e também a “Semana Nacional de Educação e Enfrentamento da Endometriose”, que foi aprovado por unanimidade na Câmara Federal no dia 19 de fevereiro de 2020 (clique aqui e assista ao vídeo), e estamos aguardando a votação no Senado para ser sancionada e virar lei.
Por conta da pandemia essa votação ainda não foi possível, mas estamos aguardando ansiosas (os) para esse feito e, quem sabe, em 2022 já poderemos ter nosso tão sonhado dia. Mas isso é só o começo da luta, por que ter o dia e a semana não irá garantir tratamento pelo SUS e muito menos a cirurgia completa quando necessária.
Precisamos mudar quase tudo na endometriose, a começar pela educação nas universidades que ainda é muito defasada, com conceitos antigos. Pouco se fala de endometriose e quando fala os conceitos antigos se sobrepõem aos novos. E isso precisa ser mudado.
Nós precisamos exigir isso. E essa mudança virá de nós, com a nossa união e reinvindicação. Por isso a importância de cada endomulher estudar para ter o conhecimento necessário para começar a reivindicar seus direitos e tratamento humanizado e adequado. Conto com você. Beijo carinhoso!