A endometriose intestinal é uma das mais temidas das portadoras, especialmente daquelas que precisam de cirurgia, uma vez que a maioria teme o uso da ‘bolsinha’. Outra dúvida é se esse tipo de endometriose pode virar câncer.
Em 2016, o doutor Alysson Zanatta escreveu um texto sobre endometriose intestinal de retossigmoide – postado na época no blogpsot -, que será dividido em duas partes. Nesta primeira, ele tira esses estigmas e também explica o que é endometriose intestinal e fala dos sintomas mais proeminentes da endometriose de retossigmoide.
O especialista também esclarece sobre a cirurgia de urgência para esse tipo de endometriose e a relação de perfuração e obstrução intestinal para a endomulher que tem endometriose de retossigmoide.
Compartilhe mais um texto exclusivo do blog A Endometriose e Eu e ajude-nos a levar uma nova conscientização da endometriose. Beijo carinhoso! Caroline Salazar
Endometriose intestinal: retossigmoide – parte 1
Por doutor Alysson Zanatta
Edição: Caroline Salazar
Queridas leitoras do blog A Endometriose e Eu,
É com alegria que participo mais uma vez do blog, sempre grato ao carinho e esforços da Caroline. Escrevo hoje sobre um tipo de endometriose relativamente comum, e que gera dúvidas às pacientes que vêm ao meu consultório: a endometriose intestinal.
O assunto já foi abordado no blog em tradução que realizei de textos do doutor David Redwine (leia os textos: parte 1, parte 2, texto 3 e parte 4). Quero aqui complementá-lo, e responder às perguntas que ouço diariamente sobre a doença.
Quando falamos de endometriose intestinal, pode vir à mente imagens de pessoas colostomizadas, de cirurgias “mutiladoras”, ou de sequelas permanentes e irreparáveis.
Inevitavelmente, associamos a endometriose intestinal ao câncer de intestino, este sim com potencial muito mais agressivo. Ouço frequentemente perguntas como: “Doutor, mas endometriose no intestino? Como vou ficar? Irá romper? Irá obstruir? Vira câncer?” As preocupações podem ser enormes, porém algumas vezes injustificadas.
A importância da endometriose intestinal se deve ao fato dela ser relativamente comum (cerca de duas ou três a cada 10 mulheres com endometriose) (1), e de gerar preocupações sobre suas consequências.
Quando falamos de endometriose intestinal, é necessário que falemos separadamente sobre cada um dos três tipos de doença, pois seus significados clínicos e abordagem são distintos.
Falarei hoje sobre a endometriose de retossigmoide (ER) (Fotos 1 e 2), o segmento final do intestino grosso que termina no canal anal e é responsável pelo armazenamento e esvaziamento das fezes.
O que é endometriose intestinal?
Entende-se por endometriose intestinal aquela que acomete ao menos a camada muscular externa, dentre as quatro camadas de “fora para dentro” da parede intestinal: serosa, muscular externa, muscular interna e mucosa.
A doença pode ocorrer em um (ou mais) de três segmentos intestinais distintos: retossigmoide (70-90%), o apêndice vermiforme (10-20%), ou o íleo terminal (2-5%).
A endometriose intestinal é um exemplo típico de endometriose profunda, ou seja, aquele tipo de endometriose que forma nódulos passíveis de identificação ao exame clínico e aos exames de imagem feito por especialistas.
A endometriose intestinal é uma manifestação tardia e avançada da doença. Quando há endometriose intestinal, certamente há outras lesões presentes que surgiram anteriormente.
Assim como as demais lesões de endometriose profunda, não há qualquer prova de que a endometriose intestinal seja causada pela menstruação retrógrada.
Se fossem causadas pela menstruação, ela poderia ocorrer em qualquer parte dos cerca de 8 metros de intestino que nós temos, pois uma célula de menstruação “solta” na cavidade poderia se implantar em qualquer lugar.
Entretanto, a doença ocorre sempre exatamente nos mesmos locais, como se esses já fossem “marcados” desde o nascimento para acontecer.
Assim como as demais lesões de endometriose, há relato da presença de células de endometriose no retossigmoide de fetos (2), o que nos faz supor que esse tipo de endometriose também tenha origem desde o período embrionário.
Quais os sintomas da endometriose do retossigmoide?
Destaco aqui, querida leitora, minha primeira mensagem importante: nem sempre há relação entre ER e sintomas intestinais.
Ou seja, ter endometriose no intestino não significa necessariamente ter sintomas intestinais, assim como ter sintomas intestinais não significa ter endometriose no intestino.
Como nossa decisão terapêutica será baseada essencialmente em sintomas, essa distinção é fundamental para escolhermos o tratamento adequado.
De forma comum, a ER pode causar distensão abdominal, “gases”, constipação, dor à evacuação (especialmente na passagem das fezes pelo canal intestinal), e sangramento nas fezes (de forma menos comum). Ouço frequentemente que há “diarreia” e que o intestino “melhora, fica mais solto” no período menstrual.
Ainda assim, como disse, não posso prever com certeza que há endometriose no retossigmoide pela presença desses sintomas, pois eles também ocorrem em mulheres com outras lesões de endometriose, especialmente aquelas no fundo de saco de Douglas (região entre o útero e o intestino, no “fundo” da vagina).
Talvez o sintoma mais específico da endometriose do retossigmoide seja o sangramento nas fezes que ocorre junto com o período menstrual.
Esse, porém, irá ocorrer em apenas 5% das pacientes com ER, pois em apenas 5% dos casos a lesão atinge a camada interna (mucosa).
Perfuração e obstrução intestinal por endometriose de retossigmoide:
A ER está raramente associada a complicações agudas, como perfuração e obstrução. Isso significa que muito dificilmente uma mulher precisará de cirurgia ‘de urgência’ devido à endometriose no retossigmoide.
Algumas mulheres podem dizer que percebem fezes “finas”, sugerindo uma redução do diâmetro intestinal pela doença. Porém, raramente haverá uma obstrução completa.
Isso acontece porque o retossigmoide tem um diâmetro maior que os demais segmentos, tornando menos possível a obstrução. Ao longo de pouco mais de 14 anos, observei apenas uma paciente que havia realizado uma cirurgia anterior de urgência por obstrução do retossigmoide devido à endometriose. Ainda assim não tive plena certeza se a situação mereceria uma cirurgia de urgência.
De forma semelhante, a perfuração espontânea do retossigmoide por endometriose também é infrequente. Apesar de haver vários relatos de perfuração, especialmente durante a gestação (3), é difícil sabermos qual a probabilidade real de que isso possa acontecer tampouco identificarmos pacientes que teriam maior probabilidade.
Portanto, devido à baixíssima possibilidade de obstrução e perfuração do retossigmoide por endometriose, a meu ver não haveria indicação cirúrgica para remoção de endometriose do retossigmoide pelo fato de que ela possa “complicar”. As indicações cirúrgicas são outras, como relatarei abaixo.
Endometriose intestinal vira câncer?
Não, muito possivelmente. Entretanto, da mesma forma que perfuração e obstrução intestinal, há também relatos isolados de câncer intestinal associados à endometriose (4).
O que sabemos é que há uma possível associação (não necessariamente causa e efeito) entre endometriose e câncer de ovário (5). Me refiro à endometriose como um todo, e não ER isoladamente.
Quase 8.000 mulheres com câncer de ovário foram questionadas se tinham (ou tiveram) endometriose. Cerca 9% delas responderam que sim, comparado a 6% de 13.000 mulheres que não tinham câncer de ovário.
Isso significaria um aumento no risco de vida de 1,5% para 2,5% ou 3% de desenvolvimento de câncer de ovário ao longo da vida. Apesar do aumento do risco relativo, ainda não conseguimos identificar quais mulheres teriam esse risco aumentado, e, portanto, não podemos afirmar com certeza que haveria redução do risco de câncer se operássemos a endometriose.
Imagem de destaque: Deposit Photos/ Caroline Salazar