Falemos de ressecção (excisão) da endometriose, e não de cauterização!

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Há pelo menos 2 anos anseio em publicar o texto que fala das diferenças entre as cirurgias: excisão/ ressecção x cauterização.

Porém, o texto deve ser escrito, claro, por um cirurgião que acredita na cura da endometriose e que realiza a cirurgia de excisão desde que iniciou sua carreira. 

E esse dia chegou! Em mais um brilhante texto, o doutor Alysson Zanatta toca em dois pontos importantes: explica as diferenças entre os 2 tipos de cirurgias e  entre reincidência (quando a doença volta) e persistência (quando a doença não foi totalmente retirada).

Entender estas diferenças é de extrema importância, pois na cauterização a doença não é totalmente retirada. Portanto, não há o retorno dela, mas sim a persistência. 

Por isso, é importante e recomendável remover toda a doença, e não apenas queimá-la. Porém para que não haja persistência, é preciso  que o cirurgião domine a técnica, conheça todos os tipos de focos de endometriose e saiba reconhece-los no corpo da mulher. 

A cirurgia de remoção total da endometriose é complexa, única e deve ser feita por cirurgião experiente e que conheça as múltiplas tonalidades da doença.

Como disse o cirurgião excisita americano, doutor Robert Albee, “Se a excisão completa é o padrão ouro para o tratamento da endometriose, por que é tão raro?”.  Espero que este texto ajude a desmistificar o que são persistência e reincidência da doença.

Compartilhe mais um texto exclusivo A Endometriose e Eu e ajude-nos a levar uma nova conscientização da endometriose. Beijo carinhoso! Caroline Salazar 

Por doutor Alysson Zanatta
Edição: Caroline Salazar

Falemos de ressecção (excisão) da endometriose, e não de cauterização

Introdução:

Entende-se, talvez erroneamente, que a endometriose seja doença crônica, recorrente e incurável, ainda que seja realizada cirurgia. Este é o tratamento mais efetivo, sob indicações de dor e/ou infertilidade, consideradas alternativas.

Fala-se assim em cirurgia de “cauterização” de focos de endometriose, enquanto outros referem-se à “excisão” ou “ressecção” da doença.

Prefiro o termo “remoção máxima”, para denotar que buscamos a remoção máxima de todos os focos, onde quer que estejam localizados.

A cauterização refere-se ao ato de usar alguma corrente elétrica em baixa (queimar) ou alta (vaporizar) intensidade sobre o foco, supostamente destruindo-o.

Com a cauterização não é possível enviar amostras para o estudo patológico (biópsia). Já a ressecção, ou excisão, refere-se à remoção de ampla área da doença até o limite do tecido saudável, com envio do material para estudo patológico.

Os termos “cauterização” e “ressecção” podem ser usados de maneira equivocada entre si.

Neste texto buscaremos explicar as principais diferenças entre cauterização e ressecção/ excisão de focos de endometriose. Isso contribuirá para concluirmos sobre a diferença entre recorrência e persistência da doença.    

A endometriose é essencialmente profunda, portanto, passível de tratamento apenas por ressecção/ excisão

O conceito de cauterização decorre do antigo entendimento que a endometriose seria uma doença superficial, peritoneal (EndPerit)1.

O peritônio é a camada que reveste internamente a parede e órgãos pélvicos e abdominais. Assim, a doença limitada ao peritônio poderia ser completamente tratada por cauterização.

Com o advento da laparoscopia moderna nos últimos 30 anos, o entendimento mudou.

Hoje sabemos que a endometriose, em sua forma clínica mais significativa, é essencialmente retroperitoneal, (abaixo do peritôneo): a chamada endometriose profunda (EndProf). Alguns cirurgiões passaram a buscar a ressecção da doença profunda, e não apenas a cauterização superficial.

Para se conseguir uma remoção máxima da doença, é preciso identificá-la. Médicos especialistas conseguem mapear com efetividade a EndProf por exames de imagem, orientando o(a) cirurgião(ã).

Ainda assim, em última análise, a ressecção dependerá do(a) médico(a) cirurgião(ã) “enxergar” todos os focos e ter a habilidade para removê-los.

Veja o desafio da identificação: a Foto 1a mostra a aparência de EndPerit próxima ao ligamento úterossacro esquerdo. A aparência é de um peritônio com maior vascularização, “mais avermelhado”, e com uma “depressão” central.

Figura 1a – pontilhado circunscrito delineando endometriose aparentemente peritoneal, apenas

Entretanto, abaixo deste peritônio está a verdadeira doença, a EndProf demonstrada na Foto 1b.

Figura 1b – pontilhado circunscrito delineando mesma lesão, mostrando sua profundidade e relação com ureter e nervos pélvicos viscerais

Este é um nódulo fibroso, constituída de músculo liso “antigo” e com esparsas glândulas semelhantes ao endométrio (conferindo-lhe o diagnóstico de endometriose).

A lesão de fato estende-se sobre o ureter esquerdo, ao fundo vaginal e à região posterior ao colo do útero. É uma forma de doença que pode passar despercebida mesmo durante a cirurgia, se não houver uma busca ativa pela tal.

Outra situação comum é o achado de “aderências”. A EndProf é capaz de causar importante distorção anatômica, retraindo os órgãos pélvicos e os aderindo entre si, a ponto de não ser possível identificá-los individualmente (trompas, ovários, intestino, por exemplo).

A Foto 2a mostra o bloqueio pélvico completo por EndProf, situação que pode ser interpretada como aderências por cirurgias ou infecções prévias.

 

Figura 2a – bloqueio pélvico completo (delineado por pontilhado circunscrito) mostrando aderências entre ovário esquerdo, retossigmoide e útero. As aderências denotam extensa lesão de endometriose profunda, localizada abaixo e mais profundamente às aderências

 

Figura 2b – pontilhado circunscrito delineando extensa lesão de endometriose profunda, após liberação dos ovários e do retossigmoide. A lesão infiltrará, contiguamente, o fundo vaginal, a região retrocervical (atrás do colo do útero), e o intestino (retossigmoide), entre outros

Na realidade, a lesão principal de EndProf estará subjacente às aderências, como demonstrada na Figura 2b.

Avaliando estas imagens, podemos entender que a cauterização é ineficaz para EndProf. Quando cauterizamos focos de EndPerit, estamos tratando apenas “a ponta do iceberg”, pois a doença está toda “submersa”.

Ainda que seja possível haver exclusivamente focos de EndPerit em determinadas mulheres, entendemos em última análise que a impressão final se a doença é superficial e/ou profunda será dependente da experiência do cirurgião em identificar todos os focos.

Como mencionado, podemos contar com a ajuda imprescindível de médicos (as) especializados em fazer o mapeamento da EndProf.

Este é feito por ultrassonografia transvaginal com preparo intestinal e/ou ressonância magnética pélvica com contraste endovenoso e gel vaginal.

Não se trata de qual o melhor exame, mas de quem está fazendo o exame, e qual a sua experiência.

O mapeamento da EndProf nos permite avaliar sua evolução ao longo do tempo e os resultados cirúrgicos, bem como diferenciar recorrência de persistência da endometriose.

A história natural da endometriose é incerta. Não se sabe quanto tempo levaria para se desenvolver. Porém, certos indícios nos levam a criar uma hipótese.

Células de endometriose podem estar presente em fetos, antes mesmo do nascimento, e curiosamente nos mesmos locais onde encontramos os nódulos de EndProf na mulher adulta 2.Leia o texto: “Endometriose é endontrada em fetos na mesma proporção e nos mesmos locais das mulheres adultas”.

Entendemos também que o endometrioma ovariano é consequência da EndProf, praticamente inexistindo de forma isolada3. Leia o texto “O Verdadeiro Significado do Endometrioma de Ovário”.

Quando diagnosticamos a endometriose, especialmente se o diagnóstico foi realizado a partir do achado de endometrioma ovariano, talvez já estejamos identificando uma doença em sua fase final, com menor capacidade de evolução.

O mesmo pensamento vale para o achado de doença intestinal avançada (nódulos grandes). Quando diagnosticamos, talvez não haja mais potencial para surgimento de novos focos de endometriose intestinal visíveis4.

Assim, a ressecção máxima/ excisão dos focos de EndProf teria a capacidade de erradicar a doença por completo e por longo prazo (talvez a vida toda), a depender da extensão da cirurgia e em qual idade a mulher tenha sido operada.

Se entendermos cura de doença como a ausência de sinais clínicos e laboratoriais da mesma, podemos supor que a endometriose pode ser curada com a ressecção cirúrgica.

Tal hipótese é substanciada por estudos com pacientes submetidas à ressecção  máxima da doença, com resultados gratificantes e efetivos de longo prazo (até 10 anos) em relação a sinais da doença e tratamento da dor 5, 6.

O desafio da avaliação científica: as cirurgias são diferentes:

Discutir cauterização versus ressecção/ excisão é de suma importância para o entendimento da cirurgia da endometriose.

Talvez o principal motivo de discordância entre os profissionais seja a crença de que a doença é causada por menstruação retrógrada e que seria peritoneal (superficial).

Na verdade, tampouco existe comprovação que células menstruais refluídas possam causar menstruação ou que a doença seja apenas peritoneal, pois entendemos que o componente clínico mais importante seja aquele da doença profunda.

Outro fator que colabora para discordância é a dificuldade de comprovação científica, acima de qualquer dúvida, da efetividade da cirurgia de ressecção máxima da endometriose.

Critérios científicos modernos exigem que haja um grande número de pacientes nos estudos, que estes grupos sejam divididos de forma aleatória (randomização), que sejam avaliados por examinadores independentes e que recebam o mesmo tratamento (no caso, a cirurgia).

Como selecionar mulheres para serem tratadas por cirurgia completa e outras não? Como saber se todas receberam o mesmo tratamento, de forma exatamente igual (a cirurgia)?

Não é possível, infelizmente. As cirurgias são diferentes, pois os cirurgiões, as técnicas e o conhecimento de cada um são diferentes.

A cirurgia de remoção máxima não é facilmente reprodutível, e isso limita seu estudo e generalização de conclusões.

Assim, experts em controle clínico da endometriose reforçam que não haveria comprovação científica por estudos complexos que a cirurgia seja eficaz7.

­De fato, considerando o mais alto nível de evidência científica, não há. E possivelmente não haverá.

Entretanto, cirurgiões dedicados à remoção máxima da doença vêm demonstrando consistentemente a sua eficácia baseados em suas experiências pessoais8-10.

Conclusões:    

A endometriose é doença essencialmente profunda (EndProf), retroperitoneal. Seu entendimento mudou, e assim também é necessário que se mude o entendimento da cirurgia.

A cauterização de focos não conseguirá sua remoção, exceto nas raras situações de lesões exclusivamente superficiais e localizadas.

Tradicionais modelos científicos não conseguirão comprovação indubitável dos benefícios da cirurgia de ressecção máxima, pois exigem condições científicas de difícil aplicação em se tratando de cirurgia de alta complexidade e pouco reprodutível.

Assim, devemos nos basear em experiências de especialistas que puderam tratar um grande número de pacientes, em seus resultados e suas taxas de complicações.

Devemos, portanto discutir ressecção/ excisão de endometriose ao invés de cauterização.

A ressecção máxima da EndProf é desafiadora e envolve alguns riscos, mas pode ser altamente efetiva para erradicar a doença.

Referências:
1- Martin DC, Khare VK, Parker LS. Clear and Opaque Vesicles: Endometriosis, Psammoma Bodies, Endosalpingiosis or Cancer? J Am Assoc Gynecol Laparosc. 1994;1(4, Part 2):S21.
2- Signorile PG, Baldi F, Bussani R, Viceconte R, Bulzomi P, D’Armiento M, et al. Embryologic origin of endometriosis: analysis of 101 human female fetuses. J Cell Physiol. 2012;227(4):1653-6.
3 – Redwine DB. Ovarian endometriosis: a marker for more extensive pelvic and intestinal disease. Fertil Steril. 1999;72(2):310-5.
4 – Redwine DB, Hopton E. Bowel Invisible Microscopic Endometriosis: Leave It Alone. J Minim Invasive Gynecol. 2018;25(3):352-5.
5 – Silveira da Cunha Araujo R, Abdalla Ayroza Ribeiro HS, Sekula VG, da Costa Porto BT, Ayroza Galvao Ribeiro PA. Long-term outcomes on quality of life in women submitted to laparoscopic treatment for bowel endometriosis. J Minim Invasive Gynecol. 2014;21(4):682-8.
6 – Dousset B, Leconte M, Borghese B, Millischer AE, Roseau G, Arkwright S, et al. Complete surgery for low rectal endometriosis: long-term results of a 100-case prospective study. Ann Surg. 2010;251(5):887-95.
7 – Vercellini P, Vigano P, Buggio L, Somigliana E. “We Can Work It Out:” The Hundred Years’ War between Experts of Surgical and Medical Treatment for Symptomatic Deep Endometriosis. J Minim Invasive Gynecol. 2018;25(3):356-9.
8 – Koninckx PR, Ussia A, Adamyan L, Wattiez A, Donnez J. Deep endometriosis: definition, diagnosis, and treatment. Fertil Steril. 2012;98(3):564-71.
9 – Pereira RM, Zanatta A, Preti CD, de Paula FJ, da Motta EL, Serafini PC. Should the gynecologist perform laparoscopic bowel resection to treat endometriosis? Results over 7 years in 168 patients. J Minim Invasive Gynecol. 2009;16(4):472-9.
10 – Bianchi PH, Pereira RM, Zanatta A, Alegretti JR, Motta EL, Serafini PC. Extensive excision of deep infiltrative endometriosis before in vitro fertilization significantly improves pregnancy rates. J Minim Invasive Gynecol. 2009;16(2):174-80.

Sobre doutor Alysson Zanatta:

Graduado e com residência médica pela Universidade Estadual de Londrina, doutor Alysson Zanatta tem especializações em uroginecologia e cirurgia vaginal pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), cirurgia laparoscópica pelo Hospital Pérola Byington de São Paulo e doutorado pela Universidade de São Paulo, USP.

Suas principais áreas de atuação são a pesquisa e o tratamento da endometriose, com ênfase na cirurgia de remoção máxima da doença 9cirurgia de excisão/ ressecção). Seus inter­esses são voltados para iniciativas que promovem a conscientização da população sobre a doença, como forma de tratar a doença adequadamente. É ex-professor adjunto de ginecologia da Universidade de Brasília (UNB) e dedica-se atualmente ao atendimento de mulheres com endometriose em seu consultório. (Acesse o currículo lattes do doutor Alysson Zanatta).

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