Endometriose versus machismo: até onde vai o (pré) conceito?

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Por Caroline Salazar
Edição: doutor Alysson Zanatta

Em 2016 realizei uma enquete na fanpage do A Endometriose e Eu pedindo sugestões de temas a serem abordados no blog – na época ainda no blogspot. Além da sugestão, recebi um relato de uma querida leitora sobre um dos maiores preconceitos sociais que existe no Brasil e que precisa ser combatido: o machismo.

Isso mesmo, o machismo também está presente também nos consultórios médicos, independente do gênero do profissional. Leia o relato abaixo:

“Acho que um tema pouco abordado para as portadoras diagnosticadas ou não, é o machismo dos profissionais da área. Muito se fala sobre como não se considera a intensidade da dor da paciente nas consultas e atendimentos de emergência, e essa é a parte mais importante da questão, mas há outras formas mais sutis e complexas de identificar o problema. Muitas vezes fui questionada a respeito da minha aparência, juventude ou vida pessoal. Em um momento de dor fica difícil discernir o que é informação relevante para o profissional construir um histórico detalhado e o que é falta de ética e até mesmo assédio. Mesmo quando o conseguimos, é comum não ter força física ou psicológica suficiente para combater o preconceito. Dois exemplos: já me disseram que tenho endometriose porque não tinha um parceiro que me proporcionasse prazer sexual como tratamento e me calei de dor. Já me questionaram o porquê não sou casada, ou tenho filhos, mas não consegui energia mental para dizer que não sou obrigada a atender padrões sociais nem sou culpada de estar doente por causa disto. Hoje (2016), aos 37 anos, consciente da minha condição e com a dor relativamente controlada sei me posicionar quando percebo a diferença entre uma abordagem e outra. Mas sou portadora de endometriose desde os 15 anos e nem sempre foi assim. O machismo tem camadas, está presente em todas as esferas sociais e a área médica não é exceção”, Alessandra I, relatou na enquete na fanpage do blog em 2016.

Apesar dos 5 anos que separam os dois textos – o do blogspot e esse -, e levando em conta que o relato ocorreu antes de 2016, está explícito que o machismo sempre esteve presente no nosso dia a dia, e na endometriose não seria diferente.

E a comprovação disso é o fato da dor menstrual nunca ter sido levada a sério. Os mitos e rótulos em relação ao período menstrual e do próprio útero vêm sendo difundidos desde os primórdios da civilização, e a perpetuação ao longo da história contribuiu – e ainda contribui – para propagar o machismo.

Por isso ainda hoje, em pleno século 21, as dores menstruais, além de não serem valorizadas, ainda são questionadas quanto à sua veracidade e intensidade, especialmente, se a mulher for mais jovem. Não é um absurdo?!

É sabido que na endometriose não existe “você é jovem demais para sentir dor”, ou “você é jovem demais para ter endometriose”, ou “sua endometriose é pouca e não condiz com sua dor”. Sabe qual o nome disso: machismo estrutural.

Como pode um (a) médico (a) questionar e discutir se o que a mulher sente é forte ou não, é real ou não?! Afinal, dor é algo tão subjetivo e cada organismo tem uma sensação diferente e reação única em relação à dor. 

Outro absurdo é a endomulher escutar, ainda em 2021, que sua ‘dor é psicológica’ e ou ‘emocional’. Neste caso, além do machismo sofremos também com a discriminação por parte dos médicos, seja homem ou mulher.

O machismo estrutural é real e está presente no cotidiano da endomulher. É só olhar para o rótulo que a maioria dos (as) profissionais colocam na portadora: “doença da mulher moderna”. Pior ainda quando ela é proferida por médicAS.

Além da misoginia explícita que a frase carrega, essa frase culpa a mulher por ter endometriose, pois dá a entender que a mulher só está doente por que não engravidou e por que continua menstruando. Escrevi um texto sobre o tema:Leia meu texto: As consequências do rótulo “doença mulher moderna” às endomulheres!

Será que se a endometriose fosse uma doença tipicamente masculina, teria o mesmo rótulo? Com certeza não! Por isso falei em machismo e misoginia.

Há pouco tempo eu disse no instagram @aendoeeu que a maior fake news da endometriose é a tal teoria da menstruação retrógrada. Além de nunca ter sido comprovada, boa parte – para não dizer a maioria – dos mitos e rótulos da endometriose vem dessa teoria.

O doutor David Redwine já explicou em diversos textos seus, que estão traduzidos no blog, por que a teoria de Sampson nunca foi provada pela ciência, muito pelo contrário. 

Segundo ele há mais provas que a refutam do que a validam. Leia os textos: “Sampson estava errado – parte 1 e parte 2″, “Desvendando a teoria de Sampson parte 1, parte 2 e parte 3″.

Além do mais, a gravidez não cura e não trata a endometriose – leia o texto: “A gravidez cura a endometriose?”. Portanto, se para ficar livre da doença não adianta ter filhos, então por que ainda escutamos médicos (as) recomendando a gravidez como tratamento?

Por que ainda hoje é recorrente a portadora escutar que tem a doença “por que não engravidou”, ou “está doente porque colocou a carreira em primeiro lugar”, ou pelo simples fato de terceiros ainda insistirem em intrometer na vida da mulher por ela ter tomado uma decisão sobre seu próprio corpo?

Na sociedade em que vivemos, o machismo está enraizado na nossa cultura, como se as mulheres ainda tivessem o papel da procriação, de servir e nada mais. E esse fato está explícito quando relacionam a doença como uma doença reprodutiva e ou dos órgãos reprodutores.

Embora o papel da mulher na sociedade tenha mudado há algumas décadas, e a tendência obviamente é que essa mudança seja cada vez maior, afinal, lugar de mulher é onde ela quiser, muito ainda se questiona quando essa mulher decide algo para si que não está ‘dentro do padrão social do patriarcado’. 

Agora te pergunto: se o corpo e a vida são dela, por que isso acontece?

Desde 2010 as mulheres já são maioria no Brasil – 53% segundo o Censo -, e 37% das residências brasileiras já eram sustentadas por elas – certeza que esse número é muito maior em 2021 -, mas a sociedade patriarcal que vivemos ignora esse dado.

Vivemos em uma sociedade livre onde a mulher tem o papel de decidir tudo para sua vida. Muitas não querem ser mães, são felizes assim e ok. Como disse a Alessandra em sua sugestão no início do texto “não somos obrigadas a atender padrões sociais”.

Outra questão relacionada ao machismo abordada por Alessandra diz respeito a um dos principais sintomas da doença: a dispareunia.

Segundo pesquisas, a dor durante e ou após a relação sexual impacta a vida de mais de 55% das endomulheres com endometriose profunda. Não é invenção, é real.

Porém quando a portadora se queixa desse sintoma é comum escutar no consultório que ela “precisa trocar de parceiro”, “vocês estão juntos há muito tempo, não há mais tesão”, entre tantas outras frases que culpabiliza a mulher.

Além da dor, muitas mulheres perdem a vontade de transar e se tornam assexuadas mesmo aquelas que têm um (a) companheiro (a). Os remédios fortes, principalmente, os à base de morfina, e os anticoncepcionais podem contribuir para perda da libido. E eu vivi exatamente isso. 

Por conta dessa falta de vontade muitas mulheres são obrigadas a transarem, o que configura abuso sexual, e foi o que me fez encabeçar desde 2019, uma Campanha Nacional contra o Abuso Psicológico e Sexual da endomulher.

Como querem que a mulher engravide se ela não consegue ter relação sexual?

Por isso querida endomulher, se você já foi vítima de machismo em alguma consulta, sinta-se abraçada e saiba que você não está sozinha.

Agora, se você escutar algo semelhante do que está escrito aqui, meu conselho é: vá atrás de um (a) especialista que te escute, te acolhe, e que trata a mulher como um todo e não apenas a doença. O olhar precisa ser a mulher como um todo.

E saiba de uma coisa: você não é culpada por nada, principalmente, por ter uma doença tão cruel como a endometriose. Não podemos aceitar nenhum rótulo que nos colocaram. O atendimento e tratamento deve ser sempre empático e humanizado. Não aceite nada menos que isso!

Precisamos mudar esta realidade e isso depende de cada uma de nós. Que o corajoso depoimento da nossa querida endoirmã Alessandra abra seus olhos e lhe dê coragem para enfrentar de peito aberto a ignorância do machismo e da discriminação que ainda está impregnada em nossa sociedade.

Precisamos mudar este cenário e abrir nossas mentes para o novo. Parte da nossa mudança está em se informar melhor sobre a doença e não aceitar ser atendida por profissionais que colaboram para a propagação de mitos, rótulos da endometriose e preconceitos como machismo, dentre tantos outros que passamos.

Vamos agir em prol de nós mesmas? Pense e reflita! Estamos juntas! Beijo carinhoso!

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